Na elaboração de um plano de recursos hídricos a fase de
diagnóstico é a mais complicada. Pois demanda equipes maiores, com várias
disciplinas, informações de inúmeras fontes, diversos tipos de análise. Eu,
quando coordeno um plano, tenho a função de elaborar a edição final dos seus
relatórios e é um verdadeiro suplício a tentativa de adaptar diferentes temas e
estilos a um padrão mais ou menos uniforme de texto que deve ter o produto.
Por conta do que os TRs exigem, o diagnóstico deve ter
diversos capítulos, como abaixo vai um exemplo:
1. Meio físico
a. Caracterização fisiográfica da bacia
b. Caracterização geológica e geomorfológica
c. Caracterização climática
d. Caracterização dos solos
e. Aptidão agrícola
f.
Aptidão à
irrigação
g. Cobertura vegetal
h. Uso e ocupação do solo
i.
Análise
espacial dos padrões de ocupação
ii.
Estrutura
fundiária
iii.
Unidades de
Conservação
i.
Processos
erosivos e sedimentológicos
2. Caracterização do Meio-Biótico
a. Fauna e Ictiofauna
b. Flora
3. Análise Institucional e Legal
a. Legislação
b. Sistema de recursos hídricos
4. Caracterização Sócio-Econômica
a. Evolução histórica
b. Padrões culturais e antropológicos
c. Atores Sociais e estratégicos
d. Economia
e. Demografia
f.
Polarização
econômica
|
5. Caracterização das águas superficiais
a. Regime pluviométrico
b. Diagnóstico das disponibilidades hídricas
c. Qualidade da água na cena atual
6. Caracterização das Águas Subterrâneas
7. Diagnóstico das demandas hídricas
a. Análise do cadastro de usuários
b. Análise do cadastro de usuários de águas subterrâneas
c. Demandas Hídricas na cena atual
i.
Abastecimento urbano
ii.
Abastecimento rural
iii.
Dessedentação animal
iv.
Mineração
v.
Indústria
vi.
Irrigação
vii.
Geração de energia
viii.
Navegação
ix.
Pesca comercial
x.
Turismo e lazer
d.
Proteção e preservação
8. Cargas Poluidoras na cena atual
9. Caracterização da infraestrutura hídrica
10. Balanço Hídrico: Confronto entre disponibilidades
e demandas hídricas
a.
Balanço Hídrico em quantidade
b.
Balanço Hídrico qualitativo
|
No quadro anterior dá para observar que a parte de recursos
hídricos só entra na coluna à direita; a da esquerda apresenta os conhecimentos
gerais que sustentarão as análises hídricas da segunda parte.
A dificuldade inicial de executar a contento os temas da
coluna à esquerda é que se deve contar com diversos especialistas dos diferentes
temas. Eles, por sua vez, muitas vezes, não têm conhecimentos maiores em
recursos hídricos. Isto os faz apresentar a mesma estrutura de relatório seja
para um plano de recursos hídricos ou para um EIA/RIMA de uma rodovia. Minha
luta com estes colegas tem sido que atendam minhas demandas de “molhar” os seus
produtos. Oriento que para um plano de recursos hídricos o tema interessa se de
alguma forma ele tem ligações com a água. Ou por que uma formação geológica
determina a existência de mais ou menos água subterrânea, ou por que um determinado
clima determinará a necessidade ou não de irrigação, ou por que determina
espécie da biota demanda um determinado regime hidrológico para sua sobrevivência,
etc. Preciso saber se construir um reservatório inundando uma área causará
algum impacto, positivo ou negativo, na biodiversidade. Se um canal corta um
corredor ecológico. Este tipo de coisas.
Infelizmente, o que recebo, muitas vezes, ainda são longos
relatórios com nomes complicados para formações geológicas, solos, bichos e
plantas, com páginas e páginas incompreensíveis, que de nada contribuem para o
plano. Traduzir isto para responder às questões levantadas previamente nem
sempre é possível. As disciplinas envolvidas nestas análises são muito
descritivas e seus profissionais estão acostumados a responder à pergunta “o
que é?”, mas não a perguntas como “o que acontece se?” e “o que fazer para?”,
quem são fundamentais em um plano de recursos hídricos.
Dos economistas vêm páginas e páginas com dados do IBGE
mostrando a demografia, sexo, idade, cobertura de diversos serviços,
indicadores econômicos de diversas naturezas, que nem sempre são interpretados na
tentativa de avaliar como isto influenciará o uso, o controle e a proteção das
águas.
Agravando este quadro existe a proliferação de informações e
estudos. Quando iniciei os trabalhos de elaboração de planos uma das
insatisfações era a carência de dados. Hoje, embora ainda exista carência em um
ou outro tema relevante, o que se observa é uma grande quantidade de
informações oriundas de diferentes fontes e bases de dados, sendo
sistematicamente exigida as suas considerações. O trabalho de consultoria se
arrasta então na leitura de vários documentos para avaliar o que existe de
realmente substancial para uso no plano, sendo necessária as suas citações para
que fique claro que foram consultados, mesmo que nada tenha sido usado.
Existem também os dados que foram obtidos por determinada
empresa, pública ou privada, mas que ela tem dificuldade de liberar para a
consultora encarregada de elaborar um plano. Certa vez ouvi de um geólogo que
sua empresa, uma estatal, teria algumas informações geológicas importantes
sobre a bacia, mas que não passaria para nós, empresa privada. Uma questão talvez
ideológica entrando em conflito com a demanda de boa qualidade do plano. Em
outra situação uma empresa privada tinha dados hidrológicos importantes de um
trecho de rio que apresentava criticidade que o modelo de balanço hídrico não
acusava, por estar trabalhando com séries hidrológicas não extensas e sem registros
no local. Somente nos passou estes dados, já no final do estudo, causando
atrasos, quando verificou que sem eles não poderíamos registrar no modelo a
criticidade que realmente havia no balanço hídrico, e que isso acabaria a
prejudicando, já que sua captação estava nesse trecho. Um detalhe importante é
que esta empresa tinha representante no comitê e, portanto, tinha ciência que
estava sendo elaborado o plano, e que esta informação hidrológica é essencial.
Portanto, além da grande quantidade de informação existente,
que nem sempre está disponível facilmente, mas às vezes é cobrada pelo
contratante, e que pode chegar tarde atrasando o cronograma, existem os
produtos parciais de consultores temáticos com longas páginas das quais se deve
garimpar alguma informação realmente útil ao plano. Para mim estariam
satisfatórios relatórios simples e compactos que fizessem comentários genéricos
sobre o que existe, sem grandes detalhes e na forma de quadros. Para então ser
indicado, do que existe, o que interessa ao plano. E aí, sim, detalhar porque o
tema afeta ou é afetado pelos recursos hídricos, como, onde e com que
intensidade, e o que fazer para mais bem seja aproveitado ou protegido, etc.
Isto reduziria em muito o esforço de elaboração e o volume dos relatórios de
diagnóstico, o que reduziria o tempo de análise e, em consequência, os prazos e
custos de elaboração de um plano.
Porém, com a entrada de uma leva significativa de
não-engenheiros nos órgãos contratantes, como já comentei em outra inserção,
muitas vezes é exigido da equipe os longos relatórios descritivos que a nada
conduzem. Exatamente por que estes profissionais não-engenheiros estão também
acostumados com a abordagem descritiva e só apreciam um produto que esteja
nesses moldes.
Não quero, porém, dar uma ideia errada que seja contra os
não-engenheiros participarem dos planos. Ao contrário, acho que os planos e o
ambiente em que são elaborados foram muito enriquecidos com a
multidisciplinaridade. Trabalhar e trocar ideias com pessoas com outras
formações nos faz ampliar nossos horizontes, aprender novos enfoques,
compartilhar ideias e chegar se possível a sínteses que em muito qualificam os
produtos. Apenas relato o embate que ainda existe entre uma abordagem mais
descritiva (“o que é?”), com outra mais especulativa e pragmática (“o que
acontece se?” e “o que fazer para?”) necessária à elaboração de um plano. E que
talvez seja superada com o tempo, na medida que seja enfrentada, como proponho.
Há necessidade de se simplificar os diagnósticos de planos
de recursos hídricos, eliminando o que não é necessário, reduzindo as páginas
de seus volumes de forma a fazer desta fase algo efetivamente útil para as fases
seguintes. E não, como frequentemente ocorre, as exigências sem sentido fazerem
com que esta fase extrapole todos os prazos e orçamento, acabando com o fôlego
das consultoras, que têm o contrato rescindido em comum acordo (ou mesmo com
pendências legais), restando um diagnóstico que em poucos anos estará desatualizado
e, portanto, de pouca utilidade para os futuros estudos.
Costumo a comentar, mais uma vez inspirado no Ackoff (“planejar
é conceber um futuro desejado e os meios práticos para alcançá-lo”) que o plano
é iniciado na Fase B, em que é concebido o futuro desejado, e se encerra na C,
em que as ações para alcance desse futuro desejado são aprovadas. A Fase A é
onde ele se assenta. Tem que ser sólida, para estabelecer os subsídios
necessários, mas não tanto que resulte em desperdícios desnecessários de tempo
e recursos.
Caro Lanna,
ResponderExcluirImpossível não concordar com as tuas colocações sobre o tema 8. O que comentas em relação aos planos de recursos hídricos de bacias hidrográficas é o mesmo tem acontecido com muitos RIMAs. Um excesso de estudos descritivos na fase de diagnóstico, mas sem assinalar “o que acontece se?”. Sobre este assunto, sempre lembro das palestras do saudoso Flávio Barth, quando enfatizava que uma das diferenças fundamentais entre os planos tradicionais e os novos, concebidos na Política Nacional de Recursos Hídricos, era a ênfase no diagnóstico, próprio dos primeiros; e o maior peso e ênfase na definição de programas e projetos, que deveria caracterizar aos “novos planos”. Ainda estamos longe disso. Mas eu espero que as tuas reflexões sejam um ponto de partida para mudar de verdade. Neste sentido, eu pretendo divulgar e discutir tuas colocações e reflexões entre os meus alunos na disciplina Gestão de Bacias Hidrográficas que ministro na Univali. É uma forma de procurar que o valioso material que nos disponibilizas tenha ainda mais efeitos multiplicativos.
Héctor Raúl Muñoz