sábado, 22 de fevereiro de 2014

9 - Termos de referência: prognósticos e as visões de futuro

Algo que sempre me incomodou nos Termos de Referência eram as orientações para a parte de prognóstico, muitas das quais até hoje são mantidas. Nos planos mais antigos, antes que as discussões sobre recursos hídricos fossem inseridas nas agendas, os planos de recursos hídricos estavam atrelados aos interesses de usos setoriais. Nesses casos, o futuro era projetado para atender a demanda desse setor, muitas vezes aproveitando em sua plenitude o potencial existente. A agricultura irrigada era a locomotiva dos planos. Avaliava-se a área irrigável, supunha-se muitas vezes seu pleno desenvolvimento, e eram propostas as intervenções para suprir a água demandada. E considerando, de forma correlata, as demais demandas de água, que requeriam volumes de água menos expressivos que a irrigação. Nesses casos mais antigos os planos de recursos hídricos eram muito diferentes dos atuais, sendo planos de intervenções estruturais para suprimento aos usos setoriais de água.
Quando se buscou adotar uma postura mais moderna, orientada aos múltiplos usos da água, e ao uso concomitante de intervenções não-estruturais, havia a orientação para se estabelecer uma projeção tendencial de usos de água e no entorno dela se fazia a projeção “otimista” e a “pessimista”. A projeção tendencial se baseava nas tendências passadas. Por exemplo, se ajustava uma curva qualquer à série de número de habitantes ao longo do tempo, se extrapolava a curva para o futuro, até o horizonte de planejamento, 20 a 30 anos em relação ao presente. Depois, se avaliava a projeção e “abria-se” o leque para cima, para estabelecer a projeção otimista, e para baixo, gerando a pessimista. Portanto, o futuro virava uma mera especulação matemática na maioria dos planos. Os potenciais da bacia, em termos de área irrigável, investimentos previstos que poderiam alterar a sua dinâmica econômica, entre tantas outras hipóteses, eram muitas vezes desconsiderados.

Evolução metodológica

Quando em 2004 me envolvi com a elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos, com função de estabelecer orientações metodológicas para a Secretaria de Recursos Hídricos do MMA, que o coordenava, comecei a estudar o tema, acreditando que havia alternativas àquela abordagem que me parecia tão frágil. Com efeito, mesmo no Brasil, começando pelo setor elétrico, encontrei abordagens que me pareceram mais completas e metodologicamente adequadas. E encontrei vasta literatura sobre o tema, internacional e nacional. Era a abordagem de planejamento por cenários. Nela, o futuro não se resumia a mera projeção do passado, entre outras coisas por que ele podia ser alterado, por nossa vontade e intervenção. Devia-se estar atento a variáveis de peso, que poderiam alterar os rumos e determinar inflexões nas projeções, como nos casos de instalação de uma cadeia produtiva de petróleo em uma bacia, situação do Plano de Recursos Hídricos Macaé e das Ostras. Ou quando decisões relacionadas à proteção ambiental pudessem restringir ou aliviar as restrições a implementação de atividades potencialmente poluentes. O planejamento deixava de ser uma aposta matemática baseada em projeções de tendências identificadas no passado, para se tornar algo discursivo, considerando as possibilidades de alteração do futuro, em função de eventos não controláveis, mas também controláveis, como nossas intervenções. Com uma vantagem: o comitê deveria fazer parte das discussões, revelando suas visões de futuro, e construindo um futuro plausível desejado - chamado de cenário normativo - sob a orientação da contrapartida técnica responsável pela elaboração do plano. Ou seja, tudo a ver com o planejamento participativo. E contribuindo para o fortalecimento do comitê.
Foi fácil convencer aos dirigentes da SRH a adotarem a metodologia de cenários, face à aderência que tinha tanto à Política Nacional, quanto ao que entendiam e valorizavam em um processo de planejamento participativo. Foi contratada consultoria externa para aplicar a metodologia, e coube a mim, como foi designado, “molhar” os cenários. Várias reuniões depois ficaram prontos os 3 cenários do Plano Nacional de Recursos Hídricos que tinha como horizonte o ano 2020, ou os cenários do PNRH 2020. Estes foram nomeados como Água para Todos, Água para Alguns e Águas para Poucos. Isto alterou a forma de realizar prognósticos na elaboração de planos de recursos hídricos. Mas ainda faltava alguma coisa para mais bem inserir a aplicação de cenários futuros na prática de planejamento estratégico de recursos hídricos.

Reparos e aprimoramentos

Os cenários do PNRH 2020 eram, na minha opinião atual, muito determinísticos. Qualquer um que ocorresse vinha tanto com uma visão de futuro do mundo, do Brasil, de várias dimensões setoriais e, o mais grave, da reação da área de recursos hídricos. Ou seja, a evolução da área, que estávamos planejando buscando que atuasse em qualquer cenário da melhor forma possível, era pré-definida. Inclusive, por minha conta, coloquei, e não foi objetado, que no pior cenário, o Águas para Poucos, a lei da Política Nacional de Recursos Hídricos seria revogada, face ao seu insucesso. Ou seja, uma das principais premissas do planejamento por cenários, de que nós somos também autores do futuro, que ele não ocorre ao acaso, era derrubada. Se ocorresse um cenário adverso, era determinado que o Sistema Nacional de Recursos Hídricos implodia, sem possibilidade da área de recursos hídricos se desempenhar melhor, ou pior, ante futuros mais amenos ou mais dramáticos.
Isto destoava, inclusive, dos cenários adotados nos Planos Decenais de Energia Elétrica, como percebi mais tarde. Eles tratavam dos ambientes futuros em que o Setor Elétrico iria atuar. O que o plano do setor deveria propor seria a forma de melhor agir seja qual fosse o cenário que ocorresse. Este equívoco, na minha avaliação, tive oportunidade de corrigir mais tarde quando fui contratado para propor cenários para a revisão do PNRH com horizonte 2025. Os novos cenários, até nos nomes, não se referiam como antes aos recursos hídricos: 1) Dinamismo Integrado, 2) Dinamismo Endógeno, 3) Perda de Oportunidades e 4) Estagnação. Acredito que tenha havido um ganho conceitual nesta nova versão.

O pesadelo computacional

Porém, ao aplicá-la na prática, a planos do Vale do Jequitinhonha, o ganho conceitual se tornou um pesadelo operacional, enfrentado pelo nosso responsável pelos modelos matemáticos de balanço hídrico em quantidade e em qualidade. Tínhamos quatro cenários, obtidos da composição dos cenários nacionais, que eu elaborara, com os cenários do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado, e considerando cenários do Plano Estadual de Recursos Hídricos: 1) Realização do Potencial, ou Sonho Californiano; 2) Dinamismo Agro-Silvo-Pastoril, ou Extensão Jaíba; 3) Dinamismo minerário, ou Retorno ao Passado; e 4) Enclave de Pobreza. Os nomes são apresentados para mostrar que eles não se tratavam de mera transposição dos cenários nacionais à região.
Como trabalhamos com 4 cenas, a atual (2012) e 3 cenas para cada cenário: curto (2017), médio (2022) e longo prazo (2032), houve necessidade de rodar o modelo de balanço hídrico quantitativo em 12 situações futuras e mais cena atual: 13 vezes. Para o balanço hídrico de qualidade era o mesmo, mas como cada parâmetro representava uma rodada, e trabalhamos com 4 - DBO e OD, Coliformes, Fósforo, Nitrogênio -, foram 52 rodadas. Um total de 65 resultados de simulações, entre os quantitativos (13) e de qualidade (52). Não só um trabalho excessivo, mas também a dificuldade de avaliar e sintetizar todos os resultados.
Isto, pois eu julgo, ao contrário de outros colegas, que o desenvolvimento de cenários só é justificável se todos forem considerados e testados ante as nossas estratégias. Não entendo cenários como algo especulativo, que avalia possíveis futuros, sem testar as estratégias em cada um, e daí concluir se são ou não adequadas.

Existe efetividade de se trabalhar com cenários no curto e médio prazos?

Porém, o esforço computacional e analítico empregado me fez repensar. Uma coisa é propor e testar estratégias em um plano nacional ou estadual de recursos hídricos, que vão estabelecer as grandes linhas de ação, de longo prazo, com flexibilidade de se adaptarem ao longo do tempo a novas inflexões e tendências, e sem prever intervenções estruturais. Testar estas estratégias em 3 a 5 cenários é viável, pois estamos lidando com grandes linhas de ação como, por exemplo, reforçar os sistemas de gerenciamento de recursos hídricos de estados que se acham na iminência de passarem por grande desenvolvimento baseado no uso dos recursos hídricos.
Outra coisa é trabalhar com tantos cenários em planos de bacia hidrográfica, que devem necessariamente prever intervenções estruturais. Isto, pois as intervenções estruturais dependem de orçamento, e nem sempre poderão ser materializadas. Não faz sentido prever um plano de investimentos de curto, médio e longo prazos, se não está assegurado sequer que todas as propostas de curto prazo venham se concretizar, quanto mais as de prazos mais longos. Esta questão temporal é considerada na Política Nacional de Recursos Hídricos que, apesar de erroneamente, na minha visão, colocar no mesmo formato o plano nacional, os estaduais e os de bacia hidrográfica, estabeleceu em seu art. 7º. que “os Planos de Recursos Hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos”. Um plano nacional ou estadual de recursos hídricos, tendo muitos programas que dependem de grandes e complexos arranjos institucionais têm que ter largos horizontes, da ordem de 15 a 30 anos. O Plano Nacional de Recursos Hídricos elaborado em 2005 teve horizonte em 2020; o de Energia, com horizonte 2030 foi apresentado em 2007, por exemplo.
Já um plano de bacia hidrográfica deve gerar intervenções que não costumam ultrapassar uns 10 anos, desde a sua concepção até a implantação. Portanto, horizontes da ordem máxima de 15 anos devem ser considerados em suas elaborações; talvez 10 anos seja o aconselhável na maioria dos casos. Não faz muito sentido elaborar cenários para horizontes tão curtos, pois se pode considerar que, mesmo em ambientes mais sujeitos a inflexões de tendências, em menos de 10 anos seus resultados não serão sentidos de forma significativa. Por isto, e considerando as demais incertezas, é possível se trabalhar adequadamente com apenas um cenário em um plano de bacia. Este não precisa ser o tendencial, no sentido de ser uma projeção do passado, como era feito antigamente. Mas pode ser o cenário mais provável, dentro do elenco de cenários que um plano de prazo mais longo, como o Estadual de Recursos Hídricos, aprovou. Ou mesmo um cenário normativo desejado, que expressa o que o comitê almeja e que pode efetivamente ser alcançado considerando os recursos disponíveis. Também não cabe simplesmente traspor o cenário do Plano Estadual de Recursos Hídricos para a bacia, mas projetá-lo, no sentido de sem perder suas características conceituais, sofrer uma adaptação à realidade da bacia.
Estas definições, de que planos de bacia hidrográfica sejam elaborados para horizontes de médio prazo, não além de 15 anos, e que desta forma poderão considerar apenas um cenário, simplificará sobremaneira as suas elaborações. Os estudos de cenários alternativos no longo prazo devem ser reservados aos planos nacional e estaduais de recursos hídricos, que não prevejam obras, mas estratégias de ação, reunidas em programas governamentais.

Mais sobre o processo de cenarização: correções de mau-entendidos conceituais frequentes


Continuando as reflexões sobre o processo de cenarização, no processo de planejamento se deve considerar a existência de dois tipos de variáveis: as controláveis e as não-controláveis pelo sistema de gerenciamento, no caso, o de recursos hídricos. São não controláveis – em parte - as variáveis que estabelecerão a evolução da população, da atividade econômica, do uso dos solos e dos recursos hídricos. A ressalva que a expressão “em parte” estabelece é que as variáveis controláveis, que são as ações e os instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos, podem – e quase sempre devem – estabelecer orientações e restrições para o uso do solo, para a apropriação de recursos hídricos e, desta forma, acabam também conformar, em parte, a evolução da população e da economia, e portanto as variáveis que são classificadas como não controláveis. Não controláveis certamente são as mudanças climáticas, os eventos extremos meteorológicos – secas e enchentes -, as sinalizações do mercado mundial, nacional e regional relacionadas às demandas de bens e serviços que possam ser providos pela economia da bacia, entre outras tantas.
De todo modo, o gerenciamento de recursos hídricos se depara com variáveis parcialmente não-controláveis - sob as quais os instrumentos de gerenciamento devem estabelecer orientações e restrições - ou totalmente não-controláveis - sob as quais nada há o que se fazer a não ser aproveitar as oportunidades que estabeleçam e se proteger das ameaças que trazem. Para se dar um exemplo simples, caso seja estabelecido um incentivo ao uso do etanol na frota de veículos nacionais – variável não-controlável - se pode esperar um aumento da produção de cana-de-açúcar que poderá ser obtida com a adoção da irrigação, sem expansão significativa da área cultivada. Isto aumentará o uso de água e o agravamento de conflitos de uso, que devem ser equacionados pelos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos – variável controlável -, incluindo a restrição de outorgas para esses fins em determinadas sub-bacias com balanços hídricos potencialmente críticos. Algo que virá conter nessas bacias a irrigação da cana.
Portanto, os cenários deverão ser estabelecidos em função de hipóteses de evolução das variáveis não-controláveis (ou parcialmente controláveis pela ação dos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos). E, em decorrência, os cenários desejáveis (ou futuro desejável pelos atores sociais da bacia) não são determinados unicamente pela vontade desses atores, mas são também fortemente influenciados pelas forças sobre as quais não existe pleno ou nenhum controle.
O que se pode denominar por “cenário desejável” ou, para não confundir, “adaptação desejável do gerenciamento de recursos hídricos aos cenários alternativos” é a condição de gerenciamento de recursos hídricos que mais bem se adequa aos cenários alternativos que são prospectados e produzem um resultado desejável para a sociedade da bacia. Entre esses cenários alternativos existe o tendencial, que nem sempre – ou quase nunca – é o melhor entre os cenários que possam ser prospectados. Haverá certamente um cenário mais desejável – às vezes chamado por otimista -, mas seu estabelecimento decorre da ação de variáveis não-controláveis pelo gerenciamento de recursos hídricos. Para cada um dos cenários a sociedade poderá propor a situação desejável, ou a “bacia que podemos” - traduzidos em termos de quantidade e qualidade de água disponível na bacia - diante das forças sobre as quais não tem controle e considerando as possibilidades e restrições políticas, econômicas e operacionais do sistema de gerenciamento de recursos hídricos.
Embora algumas abordagens – incluindo a do Plano Nacional de Recursos Hídricos 2020, tenham adotado hipóteses sobre o desempenho do gerenciamento de recursos hídricos como uma das variáveis para conformação de cenários, esta abordagem é equivocada, como já foi acima comentado, salvo melhor juízo. No processo de planejamento deve ser estabelecido qual a melhor forma de gerenciar uma bacia hidrográfica diante de cenários futuros alternativos. As estratégias que forem propostas buscam obter a melhor situação ante cada cenário, seja ele tendencial, otimista ou pessimista, ou de qualquer outra natureza. Alertando que esta classificação de cenários tendencial, otimista e pessimista é superada nas abordagens mais modernas de planejamento, algo a ser mais bem detalhado adiante.
Em conclusão, na abordagem de planejamento proposta serão prospectados cenários alternativos factíveis, conformados por comportamentos alternativos das variáveis não-controláveis (ou parcialmente controláveis) que atuam na bacia. Uns serão mais ou menos desejáveis que outros. O planejamento de recursos hídricos deverá propor a melhor aplicação de medidas estruturais (obras) e de seus instrumentos (outorga, cobrança, etc.) de forma que, qualquer que seja o cenário, a bacia alcance a melhor situação possível – em termos de qualidade e quantidade de água -, dentro das limitações que este cenário estabelece, e das possibilidades de seu sistema de gerenciamento de recursos hídricos.
Obviamente, se pode alegar que existe alguma incerteza sobre a aplicação desejável dos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos. Os órgãos outorgantes podem não estar adequadamente preparados para aplicação das outorgas, a cobrança pelo uso da água pode sofrer resistência por parte de alguns usuários, entre outras possibilidades. E por isto, o gerenciamento de recursos hídricos fracassa ante às demandas do cenário que se materializa. No entanto, o que se deseja em um plano de recursos hídricos é o estabelecimento do melhor gerenciamento de recursos hídricos factível (ou seja, considerando as limitações e restrições existentes) para cada cenário futuro alternativo. Mesmo que o planejador seja demasiadamente otimista com relação à factibilidade do gerenciamento planejado, e na prática ele fique longe do que é desejável, isto servirá, no mínimo, como alerta às possíveis consequências em termos de alcance das condições quali-quantitaivas desejáveis para os recursos hídricos. Permitindo alertar a sociedade que o futuro desejado em termos de quantidade e qualidade de água não será alcançado como previsto, e estabelecendo a necessidade de se replanejar os recursos hídricos da bacia. 

Um comentário:

  1. Olá, professor!
    Tudo bem?

    Obrigado por compartilhar teus vastos conhecimentos e parabéns pelas publicações.
    Notei a necessidade de uma pequena alteração no texto, onde fala dos cenários.
    O cenário "Água para Todos" aparece duas vezes quando deveria estar escrito "Água para Poucos".
    Um abraço e bom trabalho!

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