Algo que sempre me incomodou nos Termos de Referência eram
as orientações para a parte de prognóstico, muitas das quais até hoje são
mantidas. Nos planos mais antigos, antes que as discussões sobre recursos
hídricos fossem inseridas nas agendas, os planos de recursos hídricos estavam
atrelados aos interesses de usos setoriais. Nesses casos, o futuro era
projetado para atender a demanda desse setor, muitas vezes aproveitando em sua
plenitude o potencial existente. A agricultura irrigada era a locomotiva dos
planos. Avaliava-se a área irrigável, supunha-se muitas vezes seu pleno
desenvolvimento, e eram propostas as intervenções para suprir a água demandada.
E considerando, de forma correlata, as demais demandas de água, que requeriam
volumes de água menos expressivos que a irrigação. Nesses casos mais antigos os
planos de recursos hídricos eram muito diferentes dos atuais, sendo planos de
intervenções estruturais para suprimento aos usos setoriais de água.
Quando se buscou adotar uma postura mais moderna, orientada
aos múltiplos usos da água, e ao uso concomitante de intervenções
não-estruturais, havia a orientação para se estabelecer uma projeção tendencial
de usos de água e no entorno dela se fazia a projeção “otimista” e a
“pessimista”. A projeção tendencial se baseava nas tendências passadas. Por
exemplo, se ajustava uma curva qualquer à série de número de habitantes ao
longo do tempo, se extrapolava a curva para o futuro, até o horizonte de
planejamento, 20 a 30 anos em relação ao presente. Depois, se avaliava a
projeção e “abria-se” o leque para cima, para estabelecer a projeção otimista,
e para baixo, gerando a pessimista. Portanto, o futuro virava uma mera
especulação matemática na maioria dos planos. Os potenciais da bacia, em termos
de área irrigável, investimentos previstos que poderiam alterar a sua dinâmica
econômica, entre tantas outras hipóteses, eram muitas vezes desconsiderados.
Evolução metodológica
Quando em 2004 me envolvi com a elaboração do Plano Nacional
de Recursos Hídricos, com função de estabelecer orientações metodológicas para
a Secretaria de Recursos Hídricos do MMA, que o coordenava, comecei a estudar o
tema, acreditando que havia alternativas àquela abordagem que me parecia tão
frágil. Com efeito, mesmo no Brasil, começando pelo setor elétrico, encontrei
abordagens que me pareceram mais completas e metodologicamente adequadas. E
encontrei vasta literatura sobre o tema, internacional e nacional. Era a
abordagem de planejamento por cenários. Nela, o futuro não se resumia a mera
projeção do passado, entre outras coisas por que ele podia ser alterado, por
nossa vontade e intervenção. Devia-se estar atento a variáveis de peso, que
poderiam alterar os rumos e determinar inflexões nas projeções, como nos casos
de instalação de uma cadeia produtiva de petróleo em uma bacia, situação do
Plano de Recursos Hídricos Macaé e das Ostras. Ou quando decisões relacionadas
à proteção ambiental pudessem restringir ou aliviar as restrições a
implementação de atividades potencialmente poluentes. O planejamento deixava de
ser uma aposta matemática baseada em projeções de tendências identificadas no
passado, para se tornar algo discursivo, considerando as possibilidades de
alteração do futuro, em função de eventos não controláveis, mas também
controláveis, como nossas intervenções. Com uma vantagem: o comitê deveria
fazer parte das discussões, revelando suas visões de futuro, e construindo um
futuro plausível desejado - chamado de cenário normativo - sob a orientação da
contrapartida técnica responsável pela elaboração do plano. Ou seja, tudo a ver
com o planejamento participativo. E contribuindo para o fortalecimento do
comitê.
Foi fácil convencer aos dirigentes da SRH a adotarem a
metodologia de cenários, face à aderência que tinha tanto à Política Nacional, quanto ao que entendiam e valorizavam em um processo de planejamento participativo.
Foi contratada consultoria externa para aplicar a metodologia, e coube a mim,
como foi designado, “molhar” os cenários. Várias reuniões depois ficaram
prontos os 3 cenários do Plano Nacional de Recursos Hídricos que tinha como
horizonte o ano 2020, ou os cenários do PNRH 2020. Estes foram nomeados como
Água para Todos, Água para Alguns e Águas para Poucos. Isto alterou a forma de
realizar prognósticos na elaboração de planos de recursos hídricos. Mas ainda
faltava alguma coisa para mais bem inserir a aplicação de cenários futuros na
prática de planejamento estratégico de recursos hídricos.
Reparos e aprimoramentos
Os cenários do PNRH 2020 eram, na minha opinião atual, muito
determinísticos. Qualquer um que ocorresse vinha tanto com uma visão de futuro
do mundo, do Brasil, de várias dimensões setoriais e, o mais grave, da reação
da área de recursos hídricos. Ou seja, a evolução da área, que estávamos
planejando buscando que atuasse em qualquer cenário da melhor forma possível,
era pré-definida. Inclusive, por minha conta, coloquei, e não foi objetado, que
no pior cenário, o Águas para Poucos, a lei da Política Nacional de Recursos
Hídricos seria revogada, face ao seu insucesso. Ou seja, uma das principais
premissas do planejamento por cenários, de que nós somos também autores do
futuro, que ele não ocorre ao acaso, era derrubada. Se ocorresse um cenário
adverso, era determinado que o Sistema Nacional de Recursos Hídricos implodia, sem
possibilidade da área de recursos hídricos se desempenhar melhor, ou pior, ante
futuros mais amenos ou mais dramáticos.
Isto destoava, inclusive, dos cenários adotados nos Planos
Decenais de Energia Elétrica, como percebi mais tarde. Eles tratavam dos
ambientes futuros em que o Setor Elétrico iria atuar. O que o plano do setor
deveria propor seria a forma de melhor agir seja qual fosse o cenário que
ocorresse. Este equívoco, na minha avaliação, tive oportunidade de corrigir
mais tarde quando fui contratado para propor cenários para a revisão do PNRH
com horizonte 2025. Os novos cenários, até nos nomes, não se referiam como
antes aos recursos hídricos: 1) Dinamismo Integrado, 2) Dinamismo Endógeno, 3) Perda
de Oportunidades e 4) Estagnação. Acredito que tenha havido um ganho conceitual
nesta nova versão.
O pesadelo computacional
Porém, ao aplicá-la na prática, a planos do Vale do
Jequitinhonha, o ganho conceitual se tornou um pesadelo operacional, enfrentado
pelo nosso responsável pelos modelos matemáticos de balanço hídrico em
quantidade e em qualidade. Tínhamos quatro cenários, obtidos da composição dos
cenários nacionais, que eu elaborara, com os cenários do Plano Mineiro de
Desenvolvimento Integrado, e considerando cenários do Plano Estadual de Recursos
Hídricos: 1) Realização do Potencial, ou Sonho Californiano; 2) Dinamismo
Agro-Silvo-Pastoril, ou Extensão Jaíba; 3) Dinamismo minerário, ou Retorno ao
Passado; e 4) Enclave de Pobreza. Os nomes são apresentados para mostrar que
eles não se tratavam de mera transposição dos cenários nacionais à região.
Como trabalhamos com 4 cenas, a atual (2012) e 3 cenas para
cada cenário: curto (2017), médio (2022) e longo prazo (2032), houve
necessidade de rodar o modelo de balanço hídrico quantitativo em 12 situações
futuras e mais cena atual: 13 vezes. Para o balanço hídrico de qualidade era o
mesmo, mas como cada parâmetro representava uma rodada, e trabalhamos com 4 - DBO
e OD, Coliformes, Fósforo, Nitrogênio -, foram 52 rodadas. Um total de 65
resultados de simulações, entre os quantitativos (13) e de qualidade (52). Não
só um trabalho excessivo, mas também a dificuldade de avaliar e sintetizar todos
os resultados.
Isto, pois eu julgo, ao contrário de outros colegas, que o
desenvolvimento de cenários só é justificável se todos forem considerados e
testados ante as nossas estratégias. Não entendo cenários como algo
especulativo, que avalia possíveis futuros, sem testar as estratégias em cada
um, e daí concluir se são ou não adequadas.
Existe efetividade de se trabalhar com cenários no curto e médio prazos?
Porém, o esforço computacional e analítico empregado me fez
repensar. Uma coisa é propor e testar estratégias em um plano nacional ou
estadual de recursos hídricos, que vão estabelecer as grandes linhas de ação,
de longo prazo, com flexibilidade de se adaptarem ao longo do tempo a novas
inflexões e tendências, e sem prever intervenções estruturais. Testar estas
estratégias em 3 a 5 cenários é viável, pois estamos lidando com grandes linhas
de ação como, por exemplo, reforçar os sistemas de gerenciamento de recursos
hídricos de estados que se acham na iminência de passarem por grande desenvolvimento
baseado no uso dos recursos hídricos.
Outra coisa é trabalhar com tantos cenários em planos de
bacia hidrográfica, que devem necessariamente prever intervenções estruturais. Isto,
pois as intervenções estruturais dependem de orçamento, e nem sempre poderão
ser materializadas. Não faz sentido prever um plano de investimentos de curto,
médio e longo prazos, se não está assegurado sequer que todas as propostas de
curto prazo venham se concretizar, quanto mais as de prazos mais longos. Esta
questão temporal é considerada na Política Nacional de Recursos Hídricos que,
apesar de erroneamente, na minha visão, colocar no mesmo formato o plano
nacional, os estaduais e os de bacia hidrográfica, estabeleceu em seu art. 7º. que
“os Planos de Recursos
Hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível
com o período de implantação de seus programas e projetos”. Um plano nacional
ou estadual de recursos hídricos, tendo muitos programas que dependem de grandes
e complexos arranjos institucionais têm que ter largos horizontes, da ordem de 15
a 30 anos. O Plano Nacional de Recursos Hídricos elaborado em 2005 teve
horizonte em 2020; o de Energia, com horizonte 2030 foi apresentado em 2007,
por exemplo.
Já
um plano de bacia hidrográfica deve gerar intervenções que não costumam
ultrapassar uns 10 anos, desde a sua concepção até a implantação. Portanto,
horizontes da ordem máxima de 15 anos devem ser considerados em suas
elaborações; talvez 10 anos seja o aconselhável na maioria dos casos. Não faz
muito sentido elaborar cenários para horizontes tão curtos, pois se pode considerar
que, mesmo em ambientes mais sujeitos a inflexões de tendências, em
menos de 10 anos seus resultados não serão sentidos de forma significativa. Por
isto, e considerando as demais incertezas, é possível se trabalhar
adequadamente com apenas um cenário em um plano de bacia. Este não precisa ser
o tendencial, no sentido de ser uma projeção do passado, como era feito
antigamente. Mas pode ser o cenário mais provável, dentro do elenco de cenários
que um plano de prazo mais longo, como o Estadual de Recursos Hídricos, aprovou.
Ou mesmo um cenário normativo desejado, que expressa o que o comitê almeja e
que pode efetivamente ser alcançado considerando os recursos disponíveis.
Também não cabe simplesmente traspor o cenário do Plano Estadual de Recursos
Hídricos para a bacia, mas projetá-lo, no sentido de sem perder suas
características conceituais, sofrer uma adaptação à realidade da bacia.
Estas definições, de
que planos de bacia hidrográfica sejam elaborados para horizontes de médio
prazo, não além de 15 anos, e que desta forma poderão considerar apenas um
cenário, simplificará sobremaneira as suas elaborações. Os estudos de cenários
alternativos no longo prazo devem ser reservados aos planos nacional e
estaduais de recursos hídricos, que não prevejam obras, mas estratégias de
ação, reunidas em programas governamentais.Mais sobre o processo de cenarização: correções de mau-entendidos conceituais frequentes
Continuando as reflexões sobre o processo de cenarização, no processo de planejamento se deve considerar a existência
de dois tipos de variáveis: as controláveis e as não-controláveis pelo sistema
de gerenciamento, no caso, o de recursos hídricos. São não controláveis – em parte
- as variáveis que estabelecerão a evolução da população, da atividade
econômica, do uso dos solos e dos recursos hídricos. A ressalva que a expressão
“em parte” estabelece é que as variáveis controláveis, que são as ações e os instrumentos
de gerenciamento de recursos hídricos, podem – e quase sempre devem –
estabelecer orientações e restrições para o uso do solo, para a apropriação de
recursos hídricos e, desta forma, acabam também conformar, em parte, a evolução
da população e da economia, e portanto as variáveis que são classificadas como
não controláveis. Não controláveis certamente são as mudanças climáticas, os
eventos extremos meteorológicos – secas e enchentes -, as sinalizações do
mercado mundial, nacional e regional relacionadas às demandas de bens e
serviços que possam ser providos pela economia da bacia, entre outras tantas.
De todo modo, o gerenciamento de recursos hídricos se depara
com variáveis parcialmente não-controláveis - sob as quais os instrumentos de
gerenciamento devem estabelecer orientações e restrições - ou totalmente não-controláveis
- sob as quais nada há o que se fazer a não ser aproveitar as oportunidades que
estabeleçam e se proteger das ameaças que trazem. Para se dar um exemplo
simples, caso seja estabelecido um incentivo ao uso do etanol na
frota de veículos nacionais – variável não-controlável - se pode esperar um
aumento da produção de cana-de-açúcar que poderá ser obtida com a adoção da irrigação,
sem expansão significativa da área cultivada. Isto aumentará o uso de água e o
agravamento de conflitos de uso, que devem ser equacionados pelos instrumentos
de gerenciamento de recursos hídricos – variável controlável -, incluindo a
restrição de outorgas para esses fins em determinadas sub-bacias com balanços
hídricos potencialmente críticos. Algo que virá conter nessas bacias a
irrigação da cana.
Portanto, os cenários deverão ser estabelecidos em função de
hipóteses de evolução das variáveis não-controláveis (ou parcialmente
controláveis pela ação dos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos).
E, em decorrência, os cenários desejáveis (ou futuro desejável pelos atores sociais
da bacia) não são determinados unicamente pela vontade desses atores, mas são também
fortemente influenciados pelas forças sobre as quais não existe pleno ou nenhum
controle.
O que se pode denominar por “cenário desejável” ou, para não
confundir, “adaptação desejável do gerenciamento de recursos hídricos aos cenários
alternativos” é a condição de gerenciamento de recursos hídricos que mais bem
se adequa aos cenários alternativos que são prospectados e produzem um
resultado desejável para a sociedade da bacia. Entre esses cenários
alternativos existe o tendencial, que nem sempre – ou quase nunca – é o melhor
entre os cenários que possam ser prospectados. Haverá certamente um cenário mais
desejável – às vezes chamado por otimista -, mas seu estabelecimento decorre da
ação de variáveis não-controláveis pelo gerenciamento de recursos hídricos. Para
cada um dos cenários a sociedade poderá propor a situação desejável, ou a “bacia
que podemos” - traduzidos em termos de quantidade e qualidade de água
disponível na bacia - diante das forças sobre as quais não tem controle e considerando
as possibilidades e restrições políticas, econômicas e operacionais do sistema
de gerenciamento de recursos hídricos.
Embora algumas abordagens – incluindo a do Plano Nacional de
Recursos Hídricos 2020, tenham adotado hipóteses sobre o
desempenho do gerenciamento de recursos hídricos como uma das variáveis para conformação
de cenários, esta abordagem é equivocada, como já foi acima comentado, salvo melhor juízo. No processo de
planejamento deve ser estabelecido qual a melhor forma de gerenciar uma bacia
hidrográfica diante de cenários futuros alternativos. As estratégias que forem
propostas buscam obter a melhor situação ante cada cenário, seja ele
tendencial, otimista ou pessimista, ou de qualquer outra natureza. Alertando
que esta classificação de cenários tendencial, otimista e pessimista é superada
nas abordagens mais modernas de planejamento, algo a ser mais bem detalhado
adiante.
Em conclusão, na abordagem de planejamento proposta serão
prospectados cenários alternativos factíveis, conformados por comportamentos
alternativos das variáveis não-controláveis (ou parcialmente controláveis) que
atuam na bacia. Uns serão mais ou menos desejáveis que outros. O planejamento de
recursos hídricos deverá propor a melhor aplicação de medidas estruturais (obras)
e de seus instrumentos (outorga, cobrança, etc.) de forma que, qualquer que
seja o cenário, a bacia alcance a melhor situação possível – em termos de
qualidade e quantidade de água -, dentro das limitações que este cenário
estabelece, e das possibilidades de seu sistema de gerenciamento de recursos
hídricos.
Obviamente, se pode alegar que existe alguma incerteza sobre
a aplicação desejável dos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos. Os
órgãos outorgantes podem não estar adequadamente preparados para aplicação das
outorgas, a cobrança pelo uso da água pode sofrer resistência por parte de
alguns usuários, entre outras possibilidades. E por isto, o gerenciamento de
recursos hídricos fracassa ante às demandas do cenário que se materializa. No
entanto, o que se deseja em um plano de recursos hídricos é o estabelecimento do
melhor gerenciamento de recursos hídricos factível (ou seja, considerando as
limitações e restrições existentes) para cada cenário futuro alternativo. Mesmo
que o planejador seja demasiadamente otimista com relação à factibilidade do
gerenciamento planejado, e na prática ele fique longe do que é desejável, isto
servirá, no mínimo, como alerta às possíveis consequências em termos de alcance
das condições quali-quantitaivas desejáveis para os recursos hídricos. Permitindo
alertar a sociedade que o futuro desejado em termos de quantidade e qualidade
de água não será alcançado como previsto, e estabelecendo a necessidade de se replanejar
os recursos hídricos da bacia.
Olá, professor!
ResponderExcluirTudo bem?
Obrigado por compartilhar teus vastos conhecimentos e parabéns pelas publicações.
Notei a necessidade de uma pequena alteração no texto, onde fala dos cenários.
O cenário "Água para Todos" aparece duas vezes quando deveria estar escrito "Água para Poucos".
Um abraço e bom trabalho!