quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

11 - A falta de efetividade dos planos de recursos hídricos de bacia hidrográfica

Este problema tem sido sistematicamente apontado como uma falha importante no processo de planejamento e gerenciamento dos recursos hídricos, seja no âmbito nacional, das unidades federativas e das bacias hidrográficas. Faz-se um plano e suas propostas não são implementadas. As causas são complexas e provavelmente cada situação (país, UF ou bacia) tem suas próprias razões. Mas algumas delas podem ser apontadas, inicialmente para os planos de bacia hidrográfica.

Interpretação equivocada da Política Nacional de Recursos Hídricos

Existe uma interpretação equivocada da lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, em seu Art. 8º., que dispõe que “os Planos de Recursos Hídricos serão elaborados por bacia hidrográfica, por Estado e para o País”. Ela entende que o país, todos os estados e todas as bacias hidrográficas devam ter planos. Embora se possa aceitar que o país e vários estados apresentam problemas de recursos hídricos, e que para equacioná-los deveriam ter seus planos, isto não se aplica automaticamente a todas as bacias hidrográficas. E, talvez, nem a todos os estados. 

Justificativas para um plano de bacia hidrográfica

Um plano é justificável quando existem problemas de recursos hídricos atuais ou projetados para o futuro, geralmente identificáveis por balanços hídricos entre disponibilidades e demandas, em termos de quantidade e de qualidade; mas, também, para que um plano seja justificável, as soluções dos problemas não devem ser triviais. Bacias com pequena densidade populacional, poucas zonas urbanas, atividade agrícola predominando, poderão ter seus problemas hídricos equacionados pela aplicação da outorga e tratamento dos esgotos domésticos, por exemplo. Para se propor estas medidas devem ser elaborados estudos de outorga e de saneamento básico. Mas não há necessidade de ser elaborado um plano de recursos hídricos, em toda sua complexidade.
Muitas vezes existem problemas emergenciais em uma bacia, devido à falta de tratamento de esgotos ou a dificuldades localizadas de suprimento, que poderiam ser resolvidas por um Plano de Ações Emergenciais, de baixo custo e em pouco tempo, sem necessidade de elaboração de um plano de recursos hídricos com as complexidades que envolve.
Tão pouco haveria necessidade nessas bacias de criação de comitês. Uma associação de usuários de água - por exemplo de irrigantes - poderia fazer a interlocução com o órgão outorgante buscando o alcance de consensos.

A frustração de elaboração de um plano em bacia sem problemas que o justifique

Quando é contratado um plano de uma bacia onde não existem justificativas para esta ferramenta – e já me deparei com essa situação algumas vezes – a sensação da equipe contratada é de perplexidade. Estamos profissionalmente preparados e esperando resolver problemas; quando não existem, o que fazer? Mas se tem que cumprir o que dispõe o TR, e o plano fica descolado da realidade. 
Para se cumprir com o contrato há necessidade de se prever cenários com grandes dinâmicas econômicas nos quais, por exemplo, todas as áreas aptas à irrigação na bacia estariam desenvolvidas, quando então ocorrem problemas de balanço hídrico. Mesmo se a lógica indicar isto, o cenários dificilmente ocorrerá no horizonte de planejamento, em muitos casos. E fica a sensação de se estar desperdiçando tempo e dinheiro. E o resultado é que o plano não será implementado, pois é percebido pelos decisores a inexistência de urgência. O que é um resultado, mas que pode ser obtido de forma mais simples e barata.
Geralmente, um plano e, portanto, um comitê, são necessários em bacias com dinâmicas econômicas intensas, com vários tipos de uso de água, e conflitos de diferentes ordens, em termos quantitativos e qualitativos. Esta avaliação deveria ser elaborada no Plano Estadual de Recursos Hídricos, que identificaria as bacias hidrográficas que deveriam desenvolver seus planos e criar seus comitês; e, também, aquelas em que uma aplicação trivial de instrumentos de gerenciamento, e de investimentos como no aumento de disponibilidade hídrica, ou no tratamento de esgotos, equacionaria seus problemas atuais e futuros.

De volta ao Sistema Francês: tão decantado, mas raramente aplicado em sua essência

Já que nosso sistema se espelha no exemplo francês, cabe comentar que lá é exatamente desta forma que as coisas fluem. São elaborados os SDAGEs – Plano Diretores de Gerenciamento de Águas em cada uma das 6 Regiões Hidrográficas, que se assemelhariam tanto pela área, quanto pela abordagem, com os Planos Estaduais de Recursos Hídricos. Uma das suas propostas deve ser em quais bacias da Região Hidrográfica se justificaria a elaboração dos SAGEs, que seriam os planos de bacia hidrográfica.
Outros problemas ocorrem em bacias onde um plano de recursos hídricos é realmente necessário. Como foi comentado na inserção anterior, a arrecadação da cobrança pelo uso de água não é geralmente suficiente para sustentar os investimentos que são previstos no plano, e necessários para equacionar os problemas qualiquantitativos da bacia. Isto não seria um problema, pois os investimentos de maior monta costumam ser setoriais, e se presume que os setores, como o de saneamento e de irrigação, busquem seus recursos nas linhas prórprias de financiamento. Mas não era esta a expectativa que havia quando foram criados os primeiros comitês e implementados os sistemas estaduais de recursos hídricos: imaginava-se que a cobrança poderia suportar todos os programas, bastando calibrar seu valor para que isto acontecesse.

Como implementar o plano?

Portanto, a questão fundamental a ser tratada é como o plano poderá ser implementado já que o comitê, de forma autônoma, com base nos recursos financeiros angariados pela cobrança, não poderá fazê-lo? O que pode afinal o comitê fazer, nessa circunstância? 
No meu entendimento a única maneira é promover o plano para que ele assuma visibilidade e apoio político. Sempre procuro enfatizar aos comitês com os quais eu trabalho que um plano de recursos hídricos de bacia hidrográfica é um documento que conta com a legitimidade do comitê que o aprovou. Um prefeito municipal da bacia, identificando programas de ação que beneficiam seu município, teria maior força política na busca de recursos junto aos governos estadual e federal, e a empresas setoriais, respaldado por este documento. 
Se puder se organizar com os prefeitos dos municípios da bacia, maior seria o poder político que os respaldaria. O mesmo quanto a uma empresa ou secretaria estadual - por exemplo, de agricultura -, quando o plano aponta a vocação da bacia para a agricultura irrigada. 
Portanto, o envolvimento do comitê com as prefeituras municipais e com as empresas setoriais que atuam na bacia é uma necessidade, e uma das alternativas é serem membros do colegiado. Mesmo que nem todas as prefeituras possam estar representadas no comitê, para evitar um número excessivo de membros, os comitês deveriam se preocupar em trazer os prefeitos para reuniões específicas de apresentação de programas de ação, mostrando as suas relevâncias para os municípios. E divulgar amplamente o Resumo Executivo com a síntese de resultados que todo plano elabora ao seu final.

O "Day After" do plano

Um dos problemas já comentados em outra inserção é o “day-after” à aprovação do plano para o comitê. Um plano propõe uma dinâmica ao comitê que provavelmente ele nunca havia encontrado. Ao logo de sua elaboração o comitê é chamado a apresentar informações, a avaliar diagnósticos, a discutir prognósticos, a propor o enquadramento, a deliberar sobre programas de ação, etc. 
Todos os comitês, especialmente aqueles que estavam em meio a um marasmo burocrático, imersos em discussões pouco úteis e que em nada resultavam, durante este período percebem para que se destinam. É o momento de maior mobilização de seus membros, ajudados pela consultora que frequentemente deve bancar as despesas de reunião (transporte, almoço, lanche, etc.). 
Porém, um dia o plano é apresentado e aprovado, os exemplares entregues, e o comitê, no “dia depois” se sente perdido, sem pauta, sem até condições materiais de organizar novas reuniões. Não são muitos os comitês com condições de manter a mobilização alcançada durante o plano. Aos comitês onde suas bacias não implantaram a cobrança pelo uso de água faltam recursos para promover as reuniões. Acabam se convencendo que seu papel foi elaborar e aprovar o plano, e que agora cabe aos poderes públicos implementá-lo. Com isto, ocorre o esvaziamento do comitê, em um nível até pior do que havia antes do plano.
O quadro que formo acima é muito pessimista e, em vários casos, pode ser exagerado. De todo modo, acredito que no plano se deva criar condições para o comitê enfrentar este “dia depois”. Esta ideia surgiu inicialmente conversando rapidamente com o presidente do CBH Taquari-Antas no RS, em cujo plano tive algum envolvimento. Perguntei-lhe, após a aprovação do plano, como estavam as coisas. Ele me afirmou que iam bem, pois haviam sido criados grupos de trabalho vinculados aos programas mais relevantes e eles estavam se reunindo para impulsionar a aprovação do programa. 
Um pouco depois, a ideia foi aprofundada conhecendo a experiência do Ceará na elaboração do que é considerada uma nova versão do seu Plano Estadual de Recursos Hídricos. Uma colega consultora esteve envolvida em elaborar, por contrato com a Assembleia Legislativa do estado, um Pacto das Águas, mediante o qual seriam identificados programas relevantes para a segurança hídrica cearense e distribuídas as responsabilidades pelas suas implementações, por meio de reuniões com os atores sociais e entidades envolvidas. Achei interessantes as duas ideias: o comitê se envolver no acompanhamento da implementação dos programas de ação do plano e, fora do âmbito do comitê, buscar a distribuição de responsabilidades dessa implementação, conjugando esforços, e definindo cronogramas para busca de apoios financeiros.
No Plano de Recursos Hídricos das Bacias Hidrográficas dos rios Macaé e das Ostras, no Rio de Janeiro, foi possível propor esta experiência, aprovada pelo Comitê, e que foi chamada de Pacto das Águas, a exemplo do que ocorreu do Ceará. Porém, de forma não idêntica, seu objetivo foi o de criar uma pauta de atividades para o comitê, no “dia depois” da aprovação do plano, vinculada à implantação dos programas de ação. Para cada programa foram identificadas as entidades responsáveis pelas suas implementações e as entidades que foram chamadas de intervenientes. Essas últimas seriam aquelas que teriam interesse na implementação, no acompanhamento e nos resultados. As atividades, que deverão ser realizadas a partir de agora, com o plano aprovado e os produtos editados e entregues, seriam:
  • 1 Divulgação e mobilização em torno do estabelecimento do Pacto das Águas: fase preliminar de publicização do plano e de seus programas, e mobilização dos atores sociais e entidades para as suas implementações; identificação mais precisa de entidades responsáveis e intervenientes;
  • Reuniões para nivelamento de conhecimento e definição de estratégias para  viabilizar a implantação dos programas de ação: já separados por programas ou grupo de programas de ação, os representantes das entidades responsáveis e intervenientes, aprofundariam seus conhecimentos sobre a natureza do programa, ou grupo de programas, com fontes possíveis de financiamento e parcerias possíveis;
  • 3 Reuniões para divisão de responsabilidades na implementação dos programas de ação: conhecida a natureza do programa ou do grupo de programas, haveria uma divisão de responsabilidades entre as entidades responsáveis e intervenientes relacionada ao aporte e à busca de recursos, até o momento em que seja viabilizada a implementação do programa (ou grupo de programas);
  • 4 Reuniões para acompanhamento da implementação dos programas de ação: fase que se desenvolve ao longo do processo de implementação do programa os do grupo de programas.

Entendeu-se que o Pacto das Águas poderia ser concretizado em menos de 1 ano para cada programa ou grupo de programas, nas três primeiras fases, de forma simultânea. Cada fase deveria levar não mais que 3 meses, ficando a quarta fase para ser iniciada quando da liberação de recursos para o programa, o que dependeria do cronograma físico-financeiro acordado. Trata-se de uma experiência, que visa evitar que o plano seja abandonado após sua aprovação, como muitas vezes ocorreu, com o comitê entendendo que seu papel seria encerrado ali. Futuramente será possível avaliar se houve sucesso nesta experiência.
Cabe comentar que o CBH Macaé e das Ostras tem uma situação que difere da maioria dos comitês brasileiros: como a cobrança pelo uso da água foi aprovada por lei no estado do Rio de Janeiro, e aplicada de uma só vez a todo estado (algo que será comentado na inserção sobre a cobrança futuramente), este comitê tem disponível quase R$ 1 milhão por ano para atender as despesas aprovadas, podendo atuar com autonomia. Os comitês que não têm recursos – a quase totalidade – teriam que buscar recursos externos (públicos ou privados) para fomentar as reuniões previstas.

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