domingo, 23 de fevereiro de 2014

10 - Termos de referência: os programas de ação e a frustração relacionada à cobrança pelo uso de água

A última fase de um plano é a proposta de programas de ação. As ações envolvem tanto investimentos em medidas estruturais, obras, como em medidas não-estruturais, ou instrumentos de gestão: sistema de informações, enquadramento, cadastro, outorga e fiscalização, cobrança, áreas de restrição para proteção aos recursos hídricos, etc. Há necessidade também de se propor a “engenharia financeira”, ou seja, um quadro de fontes e de utilização de recursos, com o respectivo cronograma físico-financeiro que mostre como viabilizar financeiramente os investimentos propostos.
Antes de prosseguir, é importante comentar a frustração relacionada à cobrança pelo uso da água, que entrou acima como subtítulo. No início dos estudos e discussões que levariam à aprovação das políticas nacional e estaduais de recursos hídricos nós, jovens inexperientes que nos envolvíamos tanto no âmbito nacional, quanto nos estaduais, tínhamos grande expectativa relacionada à cobrança como fator de financiamento aos investimentos aprovados nos planos. Espelhávamo-nos no exemplo francês, onde esta conta aparentemente fechava. Imaginávamos que a cobrança resultaria em uma fonte exclusiva de financiamento de programas de despoluição e de aumento de disponibilidade hídrica, sob o controle do comitê.
Em 1995 coordenei um estudo na bacia do rio dos Sinos/RS, contratado pelo governo do estado, cujo objetivo era testar a aplicação dos instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos: enquadramento, outorga e cobrança pelo uso de água, em especial. Já nesse estudo verificamos que o potencial de arrecadação da bacia com a cobrança era ínfimo em relação à demanda de investimentos para controle da poluição. Verificamos também que mesmo estabelecendo como medidas de despoluição técnicas de tratamento de efluentes simplificadas, o custo dessas superava em muito a arrecadação hipotetizada com a cobrança e, ainda pior, era insuficiente para levar a qualidade de água sequer próxima a uma meta de enquadramento menos ambiciosa, onde predominava a classe 3 nas seções fluviais onde havia a captação para abastecimento público. O esquema de cobrança era simplificado, não aderente ao que posteriormente foram adotado em bacias brasileiras. Finalmente, imaginávamos que se a arrecadação em um ano isolado era insuficiente para sustentar os investimentos, que talvez um esquema de financiamento de longo prazo e a juros baixos ou nulos permitiria ajustar a engenharia financeira.
Mais tarde percebeu-se que o problema era maior: o comitê, que aprova a cobrança, não tem personalidade jurídica e por isto não pode ser tomador de recursos; a agência de bacia, que tem personalidade jurídica, é vinculada ao comitê por um contrato de gestão que pode ser rescindido a qualquer momento, e por isto não teria como ser habilitada a obter o empréstimo. Se o governo tomasse este empréstimo ele poderia entrar como recurso público, com as conhecidas limitações de aplicação. Além disto, não estaria assegurado que a cobrança teria continuidade para ressarcir o empréstimo, pois a qualquer momento o comitê poderia deliberar pela sua interrupção, por exemplo, se os recursos arrecadados não retornassem para a bacia. Problemas que até hoje ainda geram dúvidas e buscas de alternativas.
Mais adiante comitês de bacias de rios federais aprovaram a cobrança pelo uso de água: bacias dos rios Paraíba do Sul (2001), Piracicaba, Capivari e Jundiaí (2005), São Francisco (2009) e Doce (2011). Os estados do Rio de Janeiro (2003) e de São Paulo (2005) também aprovaram os seus mecanismos de cobrança; no primeiro a cobrança foi implantada, mediante lei, em todas as bacias do estado, simultaneamente; no segundo ela ainda não está totalmente implementada em todas as suas bacias.
Em todos os casos a cobrança foi resultado de longas negociações com os respectivos comitês de bacia, com exceção do caso do estado do Rio de Janeiro, onde a discussão foi na Assembleia Legislativa. De forma a ser viabilizada a cobrança foram aceitas várias ponderações sobre limites a capacidade de pagamento dos usuários. Com isto, a premissa adotada em todos os casos é que a cobrança não deve afetar significativamente os usuários de água. Isto determinou que a cobrança deixasse de ter seu caráter incitativo ao bom uso da água, algo que era previsto na legislação (Lei 9433/97 da Política Nacional de Recursos Hídricos, Art. 19: A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II - incentivar a racionalização do uso da água; ...). Pelos mesmos motivos, a arrecadação se tornou relativamente reduzida, impedindo que tivesse o caráter financeiro, também previsto no mesmo artigo da lei nacional (... III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos). Esta é a frustração relacionada à cobrança pelo uso da água, tema que deverá retornar futuramente.
Voltando aos programas de ação previstos nos Termos de Referência, e limitando a análise aos investimentos em medidas estruturais, rapidamente se verificou que o montante necessário extrapolava em muito a arrecadação da cobrança. Mas isto por que se agrupava no mesmo bolo investimentos setoriais que, por exemplo, se destinavam ao setor de saneamento ou irrigação, com aqueles que diziam respeito especificamente à promoção de um melhor gerenciamento de recursos hídricos na bacia. No meu entendimento, os recursos da cobrança deveriam ser destinados prioritariamente a esses últimos e, mesmo assim, àqueles que estariam sob a atribuição dos comitês. Os investimentos em promoção de melhor gerenciamento que digam respeito ao sistema estadual ou nacional de informações, ao cadastro de usos e à fiscalização da outorga, por exemplo, devem ser assumidos pelos órgãos outorgantes dos recursos públicos, pois se relacionam a atribuições específicas do poder público. Por exemplo, o Quadro abaixo mostra os programas de ação previstos em um plano de bacia recentemente aprovado. Dos 24 programas, apenas 6 podem ser considerados atividades gerenciais específicas comitê. Oito programas devem ser atribuição do órgão de gerenciamento de recursos hídricos – OGRH. Os demais se referem a investimentos a serem assumidos com recursos públicos, como o aproveitamento e incremento de disponibilidades hídricas, e programas da área ambiental, social e de setores econômicos.
Área/Setor
Programas
Área de Recursos Hídricos
Gerenciamento
Atribuições específicas do OGRH
Atribuições do CBH
· Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos
· Rede de Monitoramento de Recursos Hídricos e de Alerta de Cheias
· Cadastro de usuários de água, outorga de direitos de uso vinculada ao alcance gradual de índices de eficiência no uso e fiscalização
· Enquadramento das Águas Superficiais
· Outorga de lançamento de poluentes no meio hídrico
· Controle da extração de água subterrânea na Franja Litorânea
· Sistema de Acompanhamento da Implantação do Plano Orientado a Resultados
· Ampliação da cobrança pelo uso da água
· Plataforma de Geoprocessamento
· Mecanismos de Adesão Voluntária: Selo Azul de sustentabilidade hídrica
· Áreas prioritárias para conservação e recuperação de águas e florestas
· Inventário e Proteção Participativa de Nascentes
· Articulação do Gerenciamento de Recursos Hídricos com o Gerenciamento Costeiro
· Programa Estratégico de Comunicação e Mobilização Social
Obras e intervenções
· Aproveitamento e o incremento das disponibilidades dos recursos hídricos
Área Ambiental
· Fomento à regularização ambiental das propriedades rurais – boas práticas e acompanhamento dos efeitos dos Pagamentos por Serviços Ambientais: Programa Produtor de Água – PSA
· Identificação e Restauração de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e recuperação de áreas degradadas
· Educação Ambiental
Área Social
· Resgate e incentivo aos modos de vida e práticas de manejo das populações tradicionais
Setores
Agricultura
· Agricultura familiar na perspectiva de transição para agricultura familiar sustentável (base agroecológica e orgânica)
Saneamento
· Planos Municipais de Saneamento Básico: coleta e tratamento de esgotos
Turismo
· Ordenamento do turismo
Defesa Civil
· Proposta de intervenções estruturais visando ao controle de cheias
· Proposta de intervenções não estruturais visando a mitigação dos impactos das cheias

Embora apenas os 6 programas de atribuição do comitê deveriam ser sustentados com os recursos da cobrança, o comitê tem competência para aprovar outras destinações. Por exemplo, financiar municípios para elaborarem seus Planos Municipais de Saneamento Básico, ou programas de educação ambiental.
Para implantar os programas que não são da atribuição do comitê caberia a busca de recursos públicos municipais, estaduais e federais, e privados, onde couber. Como sobre estes recursos não se tem controle e nem é possível estimar o sucesso com que serão arrecadados, o programa de ações deve ser complementado por um programa de busca de recursos, onde atuariam as entidades públicas, privadas e do terceiro setor atuantes na bacia, por meio da representação no mesmo comitê ou diretamente. Este coletivo buscaria organizar as suas reivindicações e viabilizar politicamente o alcance dos objetivos do plano. Não é muita coisa, mas é o possível, aparentemente.

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