A última fase de um plano é a proposta de programas de ação.
As ações envolvem tanto investimentos em medidas estruturais, obras, como em
medidas não-estruturais, ou instrumentos de gestão: sistema de informações,
enquadramento, cadastro, outorga e fiscalização, cobrança, áreas de restrição
para proteção aos recursos hídricos, etc. Há necessidade também de se propor a “engenharia
financeira”, ou seja, um quadro de fontes e de utilização de recursos, com o
respectivo cronograma físico-financeiro que mostre como viabilizar
financeiramente os investimentos propostos.
Antes de prosseguir, é importante comentar a frustração
relacionada à cobrança pelo uso da água, que entrou acima como subtítulo. No
início dos estudos e discussões que levariam à aprovação das políticas nacional
e estaduais de recursos hídricos nós, jovens inexperientes que nos envolvíamos tanto
no âmbito nacional, quanto nos estaduais, tínhamos grande expectativa
relacionada à cobrança como fator de financiamento aos investimentos aprovados
nos planos. Espelhávamo-nos no exemplo francês, onde esta conta aparentemente
fechava. Imaginávamos que a cobrança resultaria em uma fonte exclusiva de
financiamento de programas de despoluição e de aumento de disponibilidade
hídrica, sob o controle do comitê.
Em 1995 coordenei um estudo na bacia do rio dos Sinos/RS,
contratado pelo governo do estado, cujo objetivo era testar a aplicação dos
instrumentos de gerenciamento de recursos hídricos: enquadramento, outorga e
cobrança pelo uso de água, em especial. Já nesse estudo verificamos que o
potencial de arrecadação da bacia com a cobrança era ínfimo em relação à
demanda de investimentos para controle da poluição. Verificamos também que
mesmo estabelecendo como medidas de despoluição técnicas de tratamento de
efluentes simplificadas, o custo dessas superava em muito a arrecadação hipotetizada
com a cobrança e, ainda pior, era insuficiente para levar a qualidade de água
sequer próxima a uma meta de enquadramento menos ambiciosa, onde predominava a
classe 3 nas seções fluviais onde havia a captação para abastecimento público.
O esquema de cobrança era simplificado, não aderente ao que posteriormente
foram adotado em bacias brasileiras. Finalmente, imaginávamos que se a
arrecadação em um ano isolado era insuficiente para sustentar os investimentos,
que talvez um esquema de financiamento de longo prazo e a juros baixos ou nulos
permitiria ajustar a engenharia financeira.
Mais tarde percebeu-se que o problema era maior: o comitê,
que aprova a cobrança, não tem personalidade jurídica e por isto não pode ser
tomador de recursos; a agência de bacia, que tem personalidade jurídica, é
vinculada ao comitê por um contrato de gestão que pode ser rescindido a
qualquer momento, e por isto não teria como ser habilitada a obter o
empréstimo. Se o governo tomasse este empréstimo ele poderia entrar como
recurso público, com as conhecidas limitações de aplicação. Além disto, não
estaria assegurado que a cobrança teria continuidade para ressarcir o
empréstimo, pois a qualquer momento o comitê poderia deliberar pela sua
interrupção, por exemplo, se os recursos arrecadados não retornassem para a
bacia. Problemas que até hoje ainda geram dúvidas e buscas de alternativas.
Mais adiante comitês de bacias de rios federais aprovaram a
cobrança pelo uso de água: bacias dos rios Paraíba do Sul (2001), Piracicaba,
Capivari e Jundiaí (2005), São Francisco (2009) e Doce (2011). Os estados do
Rio de Janeiro (2003) e de São Paulo (2005) também aprovaram os seus mecanismos
de cobrança; no primeiro a cobrança foi implantada, mediante lei, em todas as bacias
do estado, simultaneamente; no segundo ela ainda não está totalmente
implementada em todas as suas bacias.
Em todos os casos a cobrança foi resultado de longas
negociações com os respectivos comitês de bacia, com exceção do caso do estado
do Rio de Janeiro, onde a discussão foi na Assembleia Legislativa. De forma a
ser viabilizada a cobrança foram aceitas várias ponderações sobre limites a
capacidade de pagamento dos usuários. Com isto, a premissa adotada em todos os
casos é que a cobrança não deve afetar significativamente os usuários de água.
Isto determinou que a cobrança deixasse de ter seu caráter incitativo ao bom
uso da água, algo que era previsto na legislação (Lei 9433/97 da Política
Nacional de Recursos Hídricos, Art. 19:
A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I
- reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu
real valor; II
- incentivar a racionalização do uso da água; ...). Pelos mesmos motivos, a arrecadação se tornou
relativamente reduzida, impedindo que tivesse o caráter financeiro, também
previsto no mesmo artigo da lei nacional (... III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e
intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos). Esta é a frustração relacionada
à cobrança pelo uso da água, tema que deverá retornar futuramente.
Voltando aos programas de ação previstos nos Termos de
Referência, e limitando a análise aos investimentos em medidas estruturais,
rapidamente se verificou que o montante necessário extrapolava em muito a
arrecadação da cobrança. Mas isto por que se agrupava no mesmo bolo investimentos
setoriais que, por exemplo, se destinavam ao setor de saneamento ou irrigação,
com aqueles que diziam respeito especificamente à promoção de um melhor
gerenciamento de recursos hídricos na bacia. No meu entendimento, os recursos
da cobrança deveriam ser destinados prioritariamente a esses últimos e, mesmo
assim, àqueles que estariam sob a atribuição dos comitês. Os investimentos em
promoção de melhor gerenciamento que digam respeito ao sistema estadual ou
nacional de informações, ao cadastro de usos e à fiscalização da outorga, por
exemplo, devem ser assumidos pelos órgãos outorgantes dos recursos públicos, pois
se relacionam a atribuições específicas do poder público. Por exemplo, o Quadro
abaixo mostra os programas de ação previstos em um plano de bacia recentemente
aprovado. Dos 24 programas, apenas 6 podem ser considerados atividades
gerenciais específicas comitê. Oito programas devem ser atribuição do órgão de
gerenciamento de recursos hídricos – OGRH. Os demais se referem a investimentos
a serem assumidos com recursos públicos, como o aproveitamento e incremento de
disponibilidades hídricas, e programas da área ambiental, social e de setores
econômicos.
Área/Setor
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Programas
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Área de Recursos Hídricos
|
Gerenciamento
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Atribuições
específicas do OGRH
|
Atribuições
do CBH
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· Sistema de Informação sobre
Recursos Hídricos
· Rede de Monitoramento de
Recursos Hídricos e de Alerta de Cheias
· Cadastro de usuários de água,
outorga de direitos de uso vinculada ao alcance gradual de índices de
eficiência no uso e fiscalização
· Enquadramento das
Águas Superficiais
· Outorga de lançamento de
poluentes no meio hídrico
· Controle da extração de água
subterrânea na Franja Litorânea
· Sistema de Acompanhamento da
Implantação do Plano Orientado a Resultados
· Ampliação da cobrança pelo uso
da água
|
· Plataforma de Geoprocessamento
· Mecanismos de Adesão Voluntária:
Selo Azul de sustentabilidade hídrica
· Áreas prioritárias para conservação e recuperação de águas
e florestas
· Inventário e Proteção Participativa
de Nascentes
· Articulação do Gerenciamento de
Recursos Hídricos com o Gerenciamento Costeiro
· Programa Estratégico de
Comunicação e Mobilização Social
|
||
Obras e intervenções
|
· Aproveitamento e o
incremento das disponibilidades dos recursos hídricos
|
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Área Ambiental
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· Fomento à regularização ambiental das propriedades rurais
– boas práticas e acompanhamento dos efeitos dos Pagamentos por Serviços Ambientais: Programa Produtor de
Água – PSA
· Identificação e Restauração
de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e recuperação de áreas degradadas
· Educação Ambiental
|
||
Área
Social
|
· Resgate e incentivo aos modos
de vida e práticas de manejo das populações tradicionais
|
||
Setores
|
Agricultura
|
· Agricultura
familiar na perspectiva de transição para agricultura familiar sustentável
(base agroecológica e orgânica)
|
|
Saneamento
|
· Planos Municipais de Saneamento
Básico: coleta e tratamento de esgotos
|
||
Turismo
|
· Ordenamento do turismo
|
||
Defesa Civil
|
· Proposta de intervenções
estruturais visando ao controle de cheias
· Proposta de intervenções não
estruturais visando a mitigação dos impactos das cheias
|
Embora apenas os 6 programas de atribuição do comitê deveriam
ser sustentados com os recursos da cobrança, o comitê tem competência para
aprovar outras destinações. Por exemplo, financiar municípios para elaborarem
seus Planos Municipais de Saneamento Básico, ou programas de educação ambiental.
Para implantar os programas que não são da
atribuição do comitê caberia a busca de recursos públicos municipais, estaduais
e federais, e privados, onde couber. Como sobre estes recursos não se tem
controle e nem é possível estimar o sucesso com que serão arrecadados, o
programa de ações deve ser complementado por um programa de busca de recursos,
onde atuariam as entidades públicas, privadas e do terceiro setor atuantes na
bacia, por meio da representação no mesmo comitê ou diretamente. Este coletivo
buscaria organizar as suas reivindicações e viabilizar politicamente o alcance
dos objetivos do plano. Não é muita coisa, mas é o possível, aparentemente.
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