A outorga de uso de água é o
instrumento que mais evidencia o exercício da dominialidade da água por parte
da União ou das Unidades Federadas. Independente de terem sido elaborados e
implementados os demais instrumentos previstos nas normas legais - plano,
enquadramento, cobrança, áreas de restrição, sistemas de informação, etc. - a
implementação da outorga deve ser considerada como imprescindível e inadiável
por parte dos detentores da dominialidade da água. Afinal, o ente que assume
constitucionalmente o domínio de um bem público de uso comum tem a obrigação de
por ele zelar, gerenciando seu uso. E o propósito das outorgas de uso de água é
o de compatibilizar as demandas com as disponibilidades hídricas por meio de
atribuições de cotas de uso.
Dificuldade de controle das outorgas
A principal dificuldade é que as
disponibilidades, ao contrário das demandas, não podem ser previstas com
antecipação, com precisão funcional. Isto faz com que os órgãos outorgantes
usem o critério da vazão referencial para emissão das outorgas. Este critério estabelece como referência um
valor de vazão de estiagem. Podem ser emitidas outorgas adicionais até que as
vazões outorgadas acumuladas a partir de montante até qualquer seção fluvial
represente no máximo um percentual fixado da estimativa da vazão referencial
nesta seção. Três vazões de estiagem são normalmente adotadas: a Q7,10, a Q95%
e a a Q90%. O Quadro abaixo mostra os critérios adotados pela União e em
algumas unidades federadas.
Quadro – Critérios
de outorga adotados no Brasil
Órgão
gestor
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Vazão
máxima outorgável
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Legislação
referente à vazão máxima outorgável
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VAZÃO REFERENCIAL Q7,10
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IGAM/MG
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Captações a fio
d’água: 50% Q7,10, com vazão residual de 50% Q7,10.
Captações em
reservatórios: podem ser liberadas vazões superiores, mantendo o mínimo
residual de 70% da Q7,10 durante todo o tempo.
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Resolução Conjunta SEMAD-IGAM
nº 1548/12. Portarias do IGAM nº 010/1998 e
007/1999
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DAEE/SP
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50% da Q7,10
por bacia. Individualmente nunca ultrapassar 20% Q7,10
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Não existe
legislação específica.
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INEA/RJ
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Definida nos Planos
de Bacia Hidrográfica; para fins de cálculo de disponibilidade hídrica, de
acordo com a Portaria SERLA no. 567/2007, adota-se a Q7,10, sendo outorgado até 50%
deste valor; a vazão ambiental mínima deve ser 50% da Q7,10.
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Portaria SERLA
567/2007
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VAZÃO REFERENCIAL Q95%
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ANA
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70% Q95%
podendo variar em função das peculiaridades de cada região. 20% para cada
usuário individual
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Não existe, podendo
variar o critério, de acordo com peculiaridades regionais.
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SEMARH/GO
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70% Q95%
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Não possui
legislação específica.
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SUDERHSA/PR
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50% Q95%
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Decreto Estadual
4646/2001
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SEMAR/PI
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80% Q95%
(rios) e 80% Q90% (açudes)
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Não existe
legislação específica.
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VAZÃO REFERENCIAL Q90%
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NATURATINS/ TO
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75% Q90%
por bacia. Individualmente o máximo é 25% Q90%. Para barragens de
regularização, 90% vazão regularizada com 90% de garantia. Em mananciais
intermitentes até 95% Q90% nos meses de escoamento.
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Decreto estadual
2432/2005
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INEMA/BA
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80% Q90%.
20% para cada usuário individual
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Decreto Estadual
6.296/1997
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SRH/CE
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90% Q90%
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Decreto Estadual nº
23.067/1994
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AAGISA/PB
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90% Q90.
Em lagos territoriais, o limite outorgável é reduzido em 1/3.
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Decreto Estadual
19.260/1997
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SERHID/RN
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90% Q90%
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Decreto Estadual Nº
13.283/1997
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SEPLANTEC/SE
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100% Q90%.
30% Q90% para cada usuário individual
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Não existe
legislação específica
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SEM DEFINIÇÃO DE VAZÃO REFERENCIAL
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SECTMA/PE
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Não está definida
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Decreto nº
20.269/97
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SEMA/RS
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Não está definida.
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Decreto nº 37.033/96
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Inconsistência das outorgas baseadas em vazões de referência de estiagem
A fixação de um percentual da vazão de estiagem como o valor
máximo outorgável é válida para os usuários que demandam altas garantias de
suprimento. Entretanto apresenta uma inconsistência fundamental ao desconsiderar
usuários que estariam dispostos a terem reduzidas as garantias de suprimento em
troca da possibilidade de usarem mais água quando ela fosse disponível. Com
efeito, ao se estabelecer que o uso de água se limita a um percentual de uma
vazão de estiagem, se está limitando o uso de água na bacia. O que seria mais
racional é que inicialmente fossem supridas as demandas de maior prioridade,
incluindo as vazões ecológicas que mantém a integridade ecológica do corpo
hídrico; as demais demandas poderiam ser exercidas então, e até ultrapassarem
os valores outorgados quando houvesse interesse dos usuários. Entretanto,
questões de controle e fiscalização por parte do órgão outorgante limitam esta
possibilidade. Porém, em certas situações de bacias com altas demandas, que
superam as disponibilidades hídricas em estiagem, têm sido introduzidas a chamada
“regra da régua”. Dois exemplos existem no Rio Grande do Sul, na bacia transfronteiriça
do rio Quaraí e na bacia do rio Gravataí. O caso do Quaraí é abaixo apresentado.
Marco Regulatório do Uso da Água na bacia do rio Quaraí
A bacia hidrográfica do rio Quaraí tem 45% de sua área em
território brasileiro e 55% em território uruguaio, sendo que o rio Quaraí
delimita a fronteira entre os dois países. Trata-se de bacia com intenso uso de
água para irrigação da cultura de arroz. No lado brasileiro, a bacia abrange
parte dos municípios de Santana do Livramento, Quaraí, Uruguaiana e Barra do
Quaraí.
A demanda total de água no rio Quaraí supera em cerca de
três vezes a disponibilidade hídrica do rio em períodos de estiagem mais
severa. Para atender a todos os usuários de irrigação de forma isonômica, foi
estabelecido o Marco Regulatório do Uso da Água do rio Quaraí, conhecido como
“Regra da régua”, formalizado através da Resolução ANA nº 607, de 9 de novembro
de 2010. Esta resolução outorgou o direito de uso de água a 39 irrigantes,
prevendo a possibilidade de redução do tempo de captação diário, de acordo com
o nível d’água do rio, medido em uma estação de monitoramento de referência,
conforme Quadro abaixo:
Faixa
de nível d’água na estação fluviométrica do rio Quaraí em Quaraí
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Regra
de redução de volumes
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Acima
de 50cm
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Atendimento
total às demandas
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Entre
38 e 50cm
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Redução
de 45%
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Entre
22 e 38 cm
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Redução
de 70 %
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Abaixo
de 22 cm
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Interrupção
das captações
|
Claramente, esta “regra da régua” não exclui a necessidade
de fiscalização, mas que fica restrita aos períodos de estiagens mais severas e
que pode contar com o comitê de bacia para implementá-la, em uma sistemática de
autorregulação por parte dos usuários. E, obviamente, quando existem apenas 39
usuários de água com mesmo perfil – irrigantes de arroz – a fiscalização é mais
fácil de se realizar.
Dificuldades de adoção de critérios de outorga mais racionais
A história – curta – de adoção deste instrumento tem
mostrado que o órgão outorgante, na medida em que as demandas ultrapassam as
disponibilidades hídricas da estiagem referencial, acabam sendo pressionados a
ceder. Desta forma, ou são pressionados a aumentar o percentual que pode ser
outorgado da mesma vazão de estiagem referencial, ou a adotar uma vazão
referencial de estiagem maior, considerando que geralmente Q7,10 < Q95% <
Q90%. Por exemplo, em Minas Gerais, existe uma discussão entre dois grupos a
respeito de alteração do critério de outorga de águas superficiais; um grupo,
do qual fazem parte usuários, acha muito restritiva a adoção da vazão de
referência de estiagem Q7,10, alegando que Minas estaria “deixando a água que
nasce em seu território para ser usada em outros estados”, propondo a Q95% ou,
mesmo, a Q90% como referência de estiagem. Outro grupo insiste na manutenção da
Q7,10. Recentemente, por meio da Resolução Conjunta SEMAD/IGAM nº 1548/2012, o
percentual máximo da outorga passou de 30% a 50% da Q7,10 nas bacias de Minas
Gerais, com algumas exceções.
O fato do IGAM ter cedido, mas mantido a mesma referência de
estiagem, pode indicar uma dificuldade operacional: ao se alterar uma vazão
referencial de estiagem todos os estudos de regionalização elaborados para a
Q7,10 e os sistemas de apoio à decisão deverão ser também atualizados, o que
pode levar algum tempo. Os usuários, antes reprimidos em suas demandas, poderão
pleitear o seu aumento, gerando uma carga de pedidos de aumento dos limites de
outorga que o órgão outorgante teria dificuldade de analisar.
De toda maneira,
exemplos como a “regra da régua” tendem a aumentar no país, nas bacias em que
as outorgas se encontram limitadas. As novas tecnologias de telemática, aplicadas
em estações hidrotelemétricas, poderão facilitar o controle dos usos de água
nos períodos críticos de estiagem. A existência de comitês de bacia com boa
representação de usuários facilitará a adoção de critérios mais racionais. Mas,
para isto, é necessário que os órgãos outorgantes tenham condições de pessoal,
equipamentos e custeio para atender a estas demandas de controle mais
abrangentes que as atuais. E os governos devem perceber que investir nestes
aprimoramentos das funções de controle dos órgãos outorgantes resulta em
benefícios para a sociedade, oriundos de um maior e mais racional uso das
disponibilidades hídricas.
Lendo o artigo sobre decepção da cobrança pelo uso da água, comento tema pelo lado do micro, ou seja, não a teórica/acadêmica/institucional, mas sim a prática, no dia a dia. Em princípio a cobrança hoje atinge mais os usuários médios e grandes, mas são, no meu modo ver, os pequenos que fazem a diferença, pois sua ação ambientalmente incorreta, é que causa a degradação ambiental difusa. Como representante do Rotary, participo do CBH/Mogi, e vejo o Comitê, pelo lado da Organização Civil e do produtor rural, minha atividade atual. Em todas as discussões sempre criticávamos o fato das ações serem de cima para baixo e a falta de participação da sociedade civil. Quem se lembra do programa “Cidadania pelas Águas”? Na época nunca nos perguntamos se a sociedade civil que participar e, vejo no meu cotidiano que ela NÃO QUER PARTICIPAR. Para o pequeno produtor rural, infelizmente, as iniciativas vinculadas ao governo não têm nenhuma cerdibilidade. Além disso, a cobrança pelo uso da água é vista como mais uma forma do governo dificultar a vida do pequeno produtor rural. Ele já tem dificuldade em assegurar seu sustento e com mais uma “taxa”, ele fica extremamente desmotivado e por princípio boicota qualquer atividade de iniciativa pública. Além disso tenho notado que, devido à pobre participação da sociedade e a quase total ausência participativa dos municípios nos comitês, os mesmos passam a ser dirigidos por um número reduzidos de pessoas, não havendo renovação do quadro dos dirigentes. Os mesmos se repetem, mudando de posição. Os municípios por sua vez, salvo exceções, não têm a menor preocupação com os CBHs e com meio ambiente, e no âmbito de secretarias municipais, a secretaria (ou diretoria) de meio ambiente, é boicotada inclusive pelos próprios pares. Aliás o tema de “Município e Meio Ambiente”, merece uma atenção especial, pois a falta de reconhecimento da importância da questão ambiental em municípios com menos de 30.000 habitantes é assustadora. Posto o problema, vem a busca pela solução. Claro que a primeira ação está na educação, entretanto os frutos seriam colhidos a longo prazo. O trabalho junto a Associações de Bairro Rural é uma alternativa interessante entretanto, a dificuldade está em motivar os moradores a participarem. Os CBHs poderiam ser mais agressivos em trabalhar com este segmento da sociedade, apoiando diretamente a realização de reuniões e eventos técnicos/sociais. Falta fazer um estudo mais detalhado (eu desconheço um) que indique ao morador rural quais as vantagens – especialmente econômicas - em participar das iniciativas do Comitê, como fazer sua fossa, não desmatar a mata cilciar, plantar em curva de nível, cuidar dos caminhos para evitar o assoreamento dos córregos, proteger as nascentes, etc. Outra experiência interessante, e citada nesta estiagem fora de época, em nossa região, é o incentivo aos “produtores de água” no Município de Extrema/MG. No momento em que o produtor receber algum incentivo financeiro (redução de x% na conta de luz, por ex.) ele adotará medidas ambientalmente compatíveis, ou pelo menos colaborará positivamente. Mas estas ações têm de estar totalmente desprovidas de burocracia. Deve-se lembrar que o produtor fica o menor tempo possível na cidade, pois sua presença na propriedade é indispensável. Qualquer atividade burocrático/administrativa que lhe tome tempo considerado supérfulo, faz com que deixe iniciativa. Da mesma maneira, o município deve ser “reconhecido”por seu empenho. Um benefício financeiro ou a cessão de um funcionário, pago pelo comite, para trabalhar na questão de águas podem ser soluções, para atrair o Município a ser mais ativo no âmbito do Comitê.
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