segunda-feira, 3 de março de 2014

13 – Quem tem medo do enquadramento?

As metas de qualidade de água estabelecidas pelo enquadramento de corpos de água em classes de qualidade, de acordo com seus usos preponderantes, foram fixadas com orientações de duas resoluções: uma do CONAMA, que estabelece as suas bases ambientais, e outra do CNRH, que estabelece os seus procedimentos operacionais. Ambas as resoluções trazem orientações cabíveis sob o ponto de vista teórico. Contudo, alguns aspectos são de difícil abordagem, sob o ponto de vista prático. Isto faz com que sejam abertas possibilidades de interpretações mais rigorosas, ao pé da letra fria das resoluções, especialmente por não especialistas em recursos hídricos. O que intimida setores usuários que poderão ser cobrados pelo cumprimento da efetividade do enquadramento, com potenciais prejuízos aos seus interesses. Como resultado, esses usuários acabam por se opor à aprovação do enquadramento, não necessariamente por que se oponham ao alcance de metas de qualidade desejáveis, mas por terem dificuldades de operar no ambiente de grandes incertezas, que ocorre na gestão de qualidade de água.

O enquadramento como metas de qualidade a ser alcançada em determinado prazo

No que se refere às bases ambientais é de interesse dessa inserção aquelas que são dispostas pela Resolução CONAMA 357/2005 no Capitulo V - Diretrizes ambientais para o enquadramento; os destaques são meus:
Art. 38. O enquadramento dos corpos de água dar-se-á de acordo com as normas e procedimentos definidos pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
§ 1o O enquadramento do corpo hídrico será definido pelos usos preponderantes mais restritivos da água, atuais ou pretendidos.
§ 2o Nas bacias hidrográficas em que a condição de qualidade dos corpos de água esteja em desacordo com os usos preponderantes pretendidos, deverão ser estabelecidas metas obrigatórias, intermediarias e final, de melhoria da qualidade da água para efetivação dos respectivos enquadramentos, excetuados nos parâmetros que excedam aos limites devido as condições naturais.
§ 3o As ações de gestão referentes ao uso dos recursos hídricos, tais como a outorga e cobrança pelo uso da água, ou referentes a gestão ambiental, como o licenciamento, termos de ajustamento de conduta e o controle da poluição, deverão basear-se nas metas progressivas intermediarias e final aprovadas pelo órgão competente para a respectiva bacia hidrográfica ou corpo hídrico especifico.
§ 4o As metas progressivas obrigatórias, intermediarias e final, deverão ser atingidas em regime de vazão de referencia, excetuados os casos de baias de águas salinas ou salobras, ou outros corpos hídricos onde não seja aplicável a vazão de referência, para os quais deverão ser elaborados estudos específicos sobre a dispersão e assimilação de poluentes no meio hídrico.
Portanto, cabe no processo de enquadramento o estabelecimento de metas obrigatórias, intermediárias e final, as quais, por sua vez, orientarão as outorgas, cobrança e licenciamento ambiental. Também fala de um “regime de vazão de referência” onde as metas devam ser atingidas, reconhecendo que como as condições de fluxo de água variam com o tempo, que algum regime deveria ser estabelecido para que uma qualidade igual ou melhor que a especificada no enquadramento ocorresse.

Sobre as medidas para alcance das metas de qualidade de água

A Resolução CNRH 91/98 estabelece as condições de operacionalização das metas progressivas, intermediárias e final,em seus artigos 6º e 7º:
Art. 6º As propostas de metas relativas às alternativas de enquadramento deverão ser elaboradas com vistas ao alcance ou manutenção das classes de qualidade de água pretendidas em conformidade com os cenários de curto, médio e longo prazos.
§ 1º As propostas de metas deverão ser elaboradas em função de um conjunto de parâmetros de qualidade da água e das vazões de referência definidas para o processo de gestão de recursos hídricos.
§ 2º O conjunto de parâmetros de que trata o §1º deste artigo será definido em função dos usos pretensos dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos, considerando os diagnósticos e prognósticos elaborados e deverá ser utilizado como base para as ações prioritárias de prevenção, controle e recuperação da qualidade das águas da bacia hidrográfica.
§ 3º As metas deverão ser apresentadas por meio de quadro comparativo entre as condições atuais de qualidade das águas e aquelas necessárias ao atendimento dos usos pretensos identificados.
§ 4º O quadro comparativo deve vir acompanhado de estimativa de custo para a implementação das ações de gestão, incluindo planos de investimentos e instrumentos de compromisso.
Art. 7º O programa para efetivação do enquadramento, como expressão de objetivos e metas articulados ao correspondente plano de bacia hidrográfica, quando existente, deve conter propostas de ações de gestão e seus prazos de execução, os planos de investimentos e os instrumentos de compromisso que compreendam, entre outros:
I - recomendações para os órgãos gestores de recursos hídricos e de meio ambiente que possam subsidiar a implementação, integração ou adequação de seus respectivos instrumentos de gestão, de acordo com as metas estabelecidas, especialmente a outorga de direito de uso de recursos hídricos e o licenciamento ambiental;
II - recomendações de ações educativas, preventivas e corretivas, de mobilização social e de gestão, identificando-se os custos e as principais fontes de financiamento;
III - recomendações aos agentes públicos e privados envolvidos, para viabilizar o alcance das metas e os mecanismos de formalização, indicando as atribuições e compromissos a serem assumidos;
IV - propostas a serem apresentadas aos poderes públicos federal, estadual e municipal para adequação dos respectivos planos, programas e projetos de desenvolvimento e dos planos de uso e ocupação do solo às metas estabelecidas na proposta de enquadramento;e
V - subsídios técnicos e recomendações para a atuação dos comitês de bacia hidrográfica.
Portanto, nos cenários de curto, médio e longo prazos, deverão ser alcançadas metas; supõe na hipótese mais longa de alcance da meta final de enquadramento metas intermediárias deverão ser propostas para alcances nos curto e médio prazo, e a meta final no horizonte de longo prazo (art. 6º.). Mais: um quadro comparativo deverá ser apresentado com a qualidade atual, a qualidade a ser atingida nas metas atreladas às cenas de curto, médio e longo prazos, com os custos das “ações de gestão”, planos de investimento e instrumentos de compromisso (art. 6º., § 3º. e 4º.), além de prazos de execução das ações, e recomendações de ações educativas, preventivas e corretivas, de mobilização social e de gestão, com custos e fontes de financiamento (art. 7º., caput e inc. II).

As dificuldades de haver rigor na fixação de prazos para alcance das metas de qualidade

Como já comentei, seria possível atender estas exigências se:
  1. fosse possível calibrar um modelo matemático de simulação da qualidade de água razoavelmente preciso aos corpos de água da bacia;
  2.  e se fossem conhecidos os impactos de ações preventivas e corretivas na qualidade de água.
Para a calibração “razoavelmente precisa” deste modelo de qualidade de água há necessidade de se contar com uma campanha intensiva de coleta de informações primárias de vazão, de descarga de poluentes e de qualidade de água em várias seções fluviais da rede de drenagem, com duração não menor que o tempo de passagem da água entre as seções fluviais de descarga de poluentes mais distante a montante e aquela onde se necessitar simular a qualidade no ponto mais a jusante, geralmente a foz. Dependendo da bacia isto pode demandar uma campanha com coletas de dados sistemáticas, em pequenos intervalos temporais com duração de três (pequenas bacias), dez (médias bacias) e 30 dias (grandes bacias). O custo provável seria um percentual significativo do custo de elaboração do plano, dependendo dos parâmetros de qualidade a serem detectados. Geralmente o que se têm – quando isto é disponibilizado – são resultados de monitoramento em que uma amostra a coletada em cada seção, em intervalos de 3 meses, ao longo do tempo, em estados que mais avançaram neste tipo de informação, como Minas Gerais. Mesmo assim, apenas informações sobre qualidade de água são disponibilizadas: nada é apresentado em termos de carga de poluentes ou vazões fluviais.
Quanto ao impacto das ações preventivas e corretivas sabe-se com precisão razoável a eficiência de remoção de poluentes de estações de tratamento de efluentes. Pouco se sabe sobre eficiências na remoção de poluentes de outras medidas preventivas, que se julga relevantes para alcance das metas de qualidade, como recomposição de matas ciliares, cercamento de nascentes e obstáculos à entrada de animais nos corpos de água, importantes para controle da poluição difusa de origem rural.
Isto mostra que este preciosismo com que as resoluções tratam do enquadramento é inalcançável a não ser que os planos de bacia prevejam campanhas de monitoramento como comentado, o que elevará substancialmente seus custos, e pesquisas avaliem as eficiências das medidas de controle da poluição difusa rural.
No entanto, cabe refletir: seria justificável tratar desta forma planos de investimento em futuros de médio e longo prazos, quando várias incertezas existem quanto aos mesmos, em termos de aumento de população e de atividade econômica na bacia? Não seria perda de tempo e de recursos tratar com tal expectativa de precisão situações que provavelmente fujam das tendências a serem consideradas? Acredito que sim.

O impacto em distintas categorias de usuários de água como destino final de seus efluentes

Olhando agora pelo lado dos usuários de água da bacia. Podemos dividi-lo em três grupos que usam a capacidade de assimilação de resíduos dos corpo de água (expressão menos traumática que poluidores): os responsáveis pelo poluição urbana; os responsáveis pela poluição rural e os responsáveis pela poluição industrial.
O primeiro grupo, o dos cidadãos (nome que em sua origem queria dizer moradores das cidades) deve controlar suas poluições por meio de sistemas pontuais de coleta e tratamento dos esgotos nas chamadas ETEs, implantados e operados diretamente pelos municípios, por departamentos municipais de esgotos, ou por concessionárias municipais. O segundo grupo, de moradores rurais, agricultores em geral, devem tratar seus poluentes por medidas dispersas de tratamento, geralmente individuais. O terceiro grupo, por meio de estações de tratamento de efluentes industriais, que geralmente são exigidas já no processo de licenciamento ambiental.
Vamos supor que exista um enquadramento como previsto nas resoluções e que um procurador do Ministério Público, federal ou estadual, resolva acompanhá-lo. O que  ele fará, inevitavelmente, será acrescentar ao quadro que a Resolução CNRH 91/98 a coluna da qualidade de água corrente no ano em que foi considerado o curto, o médio ou o longo prazo. Se esta não estiver de acordo com as metas intermediária ou final, ele sairá atrás dos culpados pela poluição além do que foi estipulado. Para quem vai sobrar a conta a pagar? Ele até pode penalizar a cidade, responsabilizando o município ou a concessionária municipal; vai ficar perdido com o que fazer no meio rural, tantos são os indivíduos, suas relativas dificuldades de implementarem suas soluções. Mas será muito fácil responsabilizar indústrias, com lançamentos pontuais e capacidades de pagamento supostas razoáveis. É óbvio: entre fechar uma cidade, uma propriedade rural ou uma indústria à qual possa ser atribuída a causa da poluição qual é a alternativa mais fácil e politicamente mais viável e que contará com maior apoio popular?
Por outro lado, vamos considerar a situação dos órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental e pela outorga de lançamentos poluentes no meio hídrico em um trecho de um corpo de água cuja qualidade está pior do que aquela estabelecida pelo enquadramento. Eles não podem negar licenças ambientais ou as outorgas à cidade, pois o seu crescimento não é matéria de uma licença, e a negativa de descarga de volumes adicionais de poluentes gerados na cidade equivaleria a não se ter onde dispor este esgoto adicional, criando problemas sociais e políticos. Licenças para aumentar o rebanho animal também não são demandadas para pecuária extensiva e tão pouco para incremento da área cultivada. As outorgas de lançamento também em grande parte serão inaplicáveis, pois a maioria dos causadores é considerada insignificantes, embora a soma dos efeitos de todos os usuários insignificantes seja significativa. Já a indústria ...

Por que a indústria tem medo do enquadramento?

Daí a resposta à pergunta-título desta inserção: a indústria tem medo do enquadramento. E é normal e compreensível que se oponha, ou que exija maior precisão na elaboração dos estudos que levem à sua proposta, aparentemente paralisando o processo. Existe uma assimetria no tratamento entre os três grupos mencionados, em desfavor ao usuário industrial que nem sempre é o maior responsável pela poluição.

Existe solução para estes impasses?

Com solucionar este problema? Novamente, devemos nos mirar no exemplo francês, que a partir de 1964 implantou o sistema que foi nossa inspiração, e que se tenta implantar desde 1997, 33 anos depois. No que se refere à qualidade de água este sistema propõe um enquadramento similar ao nosso; mas sem prazo para ser alcançado. Existe, quando muito,um firme propósito de que a qualidade de água deva melhorar continuamente. No lado operacional, as Agências de Águas francesas detectam o que chamam de “pontos negros” da rede de drenagem, onde a qualidade corrente acha-se mais afastada da qualidade-meta do enquadramento. Propõem nos planos de bacia medidas para reduzir esta defasagem, de acordo com as possibilidades de suporte aos custos de investimento. Que por sinal são maiores que as do Brasil, em função de um sistema de cobrança pelo uso da água mais efetivo em termos de arrecadação de recursos, seja por cobrar valores maiores, seja por contar com atividades econômicas com maiores capacidades de pagamento nas bacias, como regra geral.
Portanto, acho um erro as resoluções que tratam do enquadramento na Brasil exigirem rigores desnecessários e inalcançáveis, quando o exemplo que nos inspira fugiu claramente desta postura cartorial, tão arraigada em nossa cultura. Não se pode judicializar o enquadramento, como aqui se ameaça, mas considerá-lo um acordo da bacia, a ser implementado gradualmente, sem prazos para seu alcance. Os critérios para licenciamento e para outorga de lançamentos poderão ser regrados pelas metas de qualidade, mas sempre considerando as diversas consequências e, obviamente, ouvido o comitê da bacia em consideração.

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