sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

5 – A (falta de) estruturação dos sistemas estaduais de recursos hídricos

O grande problema, até hoje não resolvido, é que a maioria dos estados não consegue estruturar seus sistemas de gerenciamento de recursos hídricos de forma que possam assumir as atribuições previstas em lei. Minimamente, esta apropriação dos recursos sob seu domínio requer o conhecimento das disponibilidades e das demandas. O conhecimento das disponibilidades, em quantidade e em qualidade, requer uma rede hidrométrica – sempre com dados quantitativos e qualitativos; e para conhecer as demandas é necessário um cadastro atualizado de usos de água.
Mais ainda, há necessidade de fiscalização, pelo menos em bacias críticas, avaliando se a água está sendo usada de acordo com as outorgas. Quantas unidades da federação podem apresentar esta situação? É fácil constatar que haverá necessidade de se ter um órgão outorgante com pessoal, material e recursos em montante tanto maior quanto maior for o território estadual e a área das bacias críticas nos balanços de quantidade e de qualidade de água. Em qualquer caso, mesmo de estados diminutos como o de Sergipe, há necessidade de se ter uma equipe considerável, e com sólida formação na área, material e recursos.
No entanto, mesmo quando o estado se organiza para ter um número suficiente de profissionais em seu órgão outorgante, frequentemente a remuneração não é competitiva com o que é oferecido seja pela iniciativa privada e pelas estatais ou, a partir de 2004, pelo órgão outorgante federal, a Agência Nacional de Água. O resultado é que boa parte dos profissionais qualificados do âmbito estadual acaba migrando para a ANA, como já ocorreram várias vezes, ou para a iniciativa privada ou estatais, com melhores níveis de remuneração. Isto tem acarretado, permanentemente, que os profissionais mais experientes do órgão outorgante saiam gradualmente, sendo substituídos por profissionais recém-formados que tão logo adquiram experiência migram para empregos e salários mais satisfatórios. E, em épocas mais recentes, em que a demanda por engenheiros aumentou, que os órgãos outorgantes estaduais mantenham um grande número de profissionais não-engenheiros, sendo gradualmente esvaziado de engenheiros que o mercado vem contratar.
Não critico a existência de profissionais não-engenheiros nos órgãos outorgantes estaduais, mesmo por que eles são necessários para tratar as águas em seus múltiplos aspectos. O problema é que em suas formações acadêmicas não são oferecidos conhecimentos de disciplinas como hidrologia, hidrogeologia, hidrometria, planejamento de recursos hídricos, que são necessários à atuação profissional. Muitos desses não engenheiros acabam tendo que se esforçar em estudos e em cursos de especialização, para adquirirem os conhecimentos que lhes falta, e conseguindo estabelecer uma atuação profissional elogiável, mas não é esta a regra. Aqueles que atingem este nível acabam, porém, novamente sendo atraídos por colocações com melhores salários e oportunidades de crescimento profissional.
Obviamente, toda generalização é burra. Existem casos exemplares de profissionais que se mantiveram nos órgãos outorgantes estaduais por acreditarem no que fazem, por entenderem estar dando uma contribuição importante – e efetivamente a dão – a despeito de ofertas financeiras mais vantajosas que em vários momentos lhes foram apresentadas. No entanto, os Sistemas Estaduais de Recursos Hídricos não podem depender desses idealistas, e devem garantir condições comparáveis ao que seus bons profissionais encontrariam no mercado de trabalho. Infelizmente, não é esta a regra.
A consequência deste processo é que os órgãos outorgantes estaduais, que são os que contratam os planos, muitas vezes não têm pessoal, em número e em capacitação, para acompanhá-los. Ocorrem situações em que os comitês, muitas vezes integrados por profissionais da área, e por professores de instituições de ensino superior, sejam a contraparte técnica mais sólida para acompanhamento de um plano. Isto, obviamente, nas bacias hidrográficas mais desenvolvidas, e com maiores dinâmicas econômicas, e que atraiam empreendimentos, gerem renda e permitam o estabelecido de instituições de ensino superior. Nas demais, acaba havendo um acompanhamento pouco qualificado, o que permite que consultoras oportunistas e sem visão de futuro deixem de fazer o melhor que podem.
Para corrigir isto, haveria duas possibilidades. A mais direta é melhor remunerar os técnicos dos órgãos outorgantes estaduais, dando-lhes perspectiva de ascensão profissional, e capacitação por meio de cursos na empresa ou fora dela. Outra possibilidade, que também tem sido empregada, especialmente quando um Plano Estadual de Recursos Hídricos é contratado, é prover a equipe do órgão outorgante com assessoria técnica especializada, na forma de consultoria externa. No entanto, os estados devem entender que seja qual for o arranjo adotado, a capacitação dos seus funcionários é um dos fatores mais importantes para a gestão eficiente. Melhor seria investir nisto, de forma a habilitar seu pessoal para fazer o “feijão-com-arroz” do gerenciamento de recursos hídricos – cadastro, outorga e fiscalização – do que deixá-los desmotivados e, em paralelo, contratar planos que, por falta de acompanhamento qualificado, acabarão tendo talvez qualidade duvidosa e sempre efeitos nulos, por falta de capacidade interna de implementação.

2 comentários:

  1. Respaldado na minha experiência como diretor de recursos hídricos em SC, em dois períodos, endosso totalmente tuas observações.
    Héctor Raúl Muñoz

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  2. Professor Lanna, Professor Héctor, bom dia!
    Apenas para acrescentar, as empresas de consultoria especializadas em recursos hídricos também acabam sofrendo por esta falta de estrutura, uma vez que raramente os instrumentos previstos em lei são cobrados.
    Desta forma, toda a cadeia de trabalho em recursos hídricos, desde a elaboração das normativas, passando pelas consultorias e chegando na aplicação dos conhecimentos é comprometida.
    Inevitavelmente, quem sofre o dano é a população com diversos problemas associados ao uso da água.

    Parabéns pela página, professor Lanna.
    Agradecemos a tua contribuição.
    Marcus Phoebe.

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