quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

segunda-feira, 24 de março de 2014

17 – Cobrança pelo uso de água: ruim com ela, pior sem...

O título um tanto exagerado desta postagem refere-se à decepção que instrumento de cobrança pelo uso de água traz, quando se compara a expectativa que havia a seu respeito, com a realidade resultante de sua implantação. A cobrança não permite apoiar, onde foi implantada, os investimentos que as bacias hidrográficas demandam para atender as melhorias nos balanços hídricos em quantidade e qualidade, como era esperado. Mas permite, nos trechos federais de algumas bacias:
  • Piracicaba, Capivari e Jundiaí: assumir parte dos investimentos em obras de saneamento que contribuem para a melhoria da qualidade de água.
  • Paraíba do Sul: a elaboração de planos municipais de saneamento básico.
  • São Francisco: a implantação de vários pequenos projetos hidroambientais para conservação do solo, proteger nascentes e readequar estradas rurais e elaborar de planos municipais de saneamento básico.
Em bacias de rios estaduais, em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais projetos desta natureza e também de educação ambiental, entre outros exemplos, têm sido sustentados pelos recursos da cobrança.
Portanto, constata-se algumas melhorias que, se não têm a abrangência que se esperava originalmente, pelo menos promovem sentido à existência de um comitê de bacia.
Entretanto, nem todos os comitês têm capacidade de pagamento suficiente para arrecadar recursos que justifiquem a implementação deste instrumento. Fazendo as contas, se pode verificar que apenas bacias com populações expressivas e industrializadas tem arrecadação significativa na qual a cobrança possa fazer alguma diferença para o gerenciamento de recursos hídricos. O Quadro a seguir ordena as bacias onde existe cobrança, pelo valor arrecadado em 2012.

Bacia Hidrográfica
Bacia/UF
Domínio
Início
2012
Arrecadado
Guandu
RJ
RJ
mar/04
    22.017.496,00
CBHSF
S. Francisco
União
jul/10
    21.500.946,05
PCJ (interestadual)
PCJ
União
jan/06
    17.840.713,24
PCJ (paulista)
PCJ
SP
jan/07
    17.677.619,98
CEIVAP (interestadual)
Paraíba Sul
União
mar/03
    10.310.157,36
Baixada Santista
SP
SP
jan/12
     8.799.179,59
Velhas
S. Francisco
MG
mar/10
     7.560.694,97
Sorocaba e Médio Tietê
SP
SP
ago/10
     6.879.646,71
Piracicaba
Doce
MG
jan/12
     5.581.166,15
Araguari
Paranaíba
MG
mar/10
     5.563.298,00
Baía de Guanabara
RJ
RJ
mar/04
     3.954.626,59
CBH-Doce3
Doce
União
nov/11
     3.438.674,02
Paraíba do Sul
Paraíba Sul
SP
jan/04
     3.044.899,46
CEIVAP (Transp. PBS/Guandu)1
Paraíba Sul
União
jan/07
     2.959.922,20
Piranga
Doce
MG
jan/12
     2.215.353,99
Lagos São João
RJ
RJ
mar/04
     1.653.396,21
Médio Paraíba do Sul
Paraíba Sul
RJ
jan/04
     1.191.622,93
Macaé e Rio das Ostras
RJ
RJ
mar/04
     1.073.149,84
Santo Antônio
Doce
MG
jan/12
        978.228,17
Piabanha
Paraíba Sul
RJ
jan/04
        750.585,34
Dois Rios
Paraíba Sul
RJ
jan/04
        659.829,76
Manhuaçu
Doce
MG
jan/12
        506.806,07
Caratinga
Doce
MG
jan/12
        500.733,84
Suaçuí
Doce
MG
jan/12
        428.837,69
Baía da Ilha Grande
RJ
RJ
mar/04
        270.401,85
PCJ (interestadual) - MDP4
PCJ
União
jan/07
        221.694,70
Baixo Paraíba do Sul
Paraíba Sul
RJ
jan/04
        183.384,57
Piracicaba-Jaguari
PCJ
MG
mar/10
        104.130,93
Itabapoana
RJ
RJ
mar/04
          49.599,69
TOTAL NO PAÍS2



  144.956.873,70
TOTAL UNIÃO2



    53.312.185,37
TOTAL SP



    36.401.345,74
TOTAL RJ



    31.804.092,78
TOTAL MG



    23.439.249,81
TOTAL NO PAÍS2



  144.956.873,70
1- Conforme art. 1º da Resolução CNRH nº 66/06, a cobrança pelo uso das águas transpostas da bacia do rio Paraíba do Sul para a bacia do rio Guandu corresponde a 15% dos recursos arrecadados pela cobrança na bacia do rio Guandu (o CBH-Guandu tem atuação nos rios Guandu, Guarda e Guarda-Mirim, os 15% referem-se apenas a cobrança arrecadada sobre as águas superficiais do rio Guandu). Não há emissão de boleto pela ANA, sendo os valores transferidos diretamente do INEA/RJ para o CEIVAP.
2- No total da União e do País para não haver dupla contagem, desconsiderou-se os valores da linha "CEIVAP (Transp. PBS/Guandu)", pois os mesmos estão contabilizados na linha "Guandu".
3- Os boletos referentes à cobrança de 2011 na Bacia do Doce foram encaminhados somente em 2012.
4- MDP = Mecanismo Diferenciado de Pagamento, conforme Resolução CNRH nº 78/07.
Fonte: Agência Nacional de Água; atualização: mar/2013.

Os 145 milhões arrecadados em todo país em 2012 não representam muita coisa frente à demanda de recursos para despoluição das bacias, por exemplo. Mas, como foi dito acima, pelo menos justifica a existência do CBH: para tomar a decisão sobre onde aplicar estes recursos.

Cobrança no estado do Rio de Janeiro

O início da cobrança no Estado foi precedido da experiência pioneira na bacia do rio Paraíba do Sul. Posteriormente, através da Lei RJ 4.247, de 16 de dezembro de 2003, a cobrança pelo uso da água foi estendida a todo o estado do Rio de Janeiro, sendo alterada em sua redação pela Lei RJ 5.234/08, tendo como principais características:
  • Critérios e valores iguais aos fixados pelo CEIVAP em 2003 (e que foram alterados posteriormente pelo próprio CEIVAP);
  • Condicionamento à efetiva implantação dos comitês de bacia estaduais e à elaboração dos respectivos planos de bacia hidrográfica.
No que concerne aos aspectos metodológicos, a cobrança pelo uso da água no Rio de Janeiro apresenta poucas distinções em relação à formulação implementada pelo CEIVAP em 2003. Portanto, o Rio de Janeiro apresentou a novidade de implementar a cobrança em todo o estado, mediante uma lei. Isto, à primeira vista, pareceu ir de encontro (ou seja, não estar de acordo), e não ao encontro (em sintonia), com a Política Nacional de Recursos Hídricos. Afinal, o instrumento foi aplicado à todo estado, sendo que o mecanismo e os preços não foram deliberados pelos comitês, mas impostos pela lei de origem no executivo do estado.
Entretanto, o fato dos comitês das bacias fluminenses passarem a ter recursos para aplicar, não apenas estimulou as suas criações como também lhes deu uma pauta de atuação. Muitos, com os recursos a eles destinados – na realidade os 7,5% -, puderam constituir suas Agências de Bacia, e terem assim uma secretaria administrativa, ou até mais do que isto, para organizar a agenda, promover as reuniões e pagar o custeio da máquina. E, mais importante, implementar pequenos projetos com os 93,5% restante dos recursos.

Cobrança no estado do Rio Grande do Sul

Interessante que o Rio Grande do Sul, em sua lei estadual da Política de Recursos Hídricos, já havia previsto algo similar. Em seu Art. 23 dispôs que “Serão elementos constitutivos do Plano Estadual de Recursos Hídricos: IX - o limite mínimo para a fixação dos valores a serem cobrados pelo uso da água”. Ou seja, pela lei, o Plano Estadual de Recursos Hídricos fixaria para todo o estado um limite mínimo de cobrança que poderia ser aumentado pelo comitê em seu plano de bacia. No entanto, o estado demorou a aprovar seu plano estadual, fazendo-o apenas este ano, 2014, passados, portanto, quase 20 anos da aprovação da lei. E nele não houve definição deste limite mínimo de cobrança que poderia dar consistência funcional e recursos para que os comitês com capacidade de arrecadação não fiquem à míngua, dependendo do estado ou dos municípios para obterem recursos para manterem minimamente as suas secretarias e alguns programas como os que são apoiados no Rio de Janeiro.

Conclusões parciais

Parece que o exemplo colocado em prática no Rio de Janeiro - e apenas na teoria no Rio Grande do Sul - poderia ser um caminho para dar consequência aos comitês instalados, desde que se refiram a bacia hidrográficas com capacidade de arrecadação. Permitiria que não dependessem mais dos governos para manterem uma secretaria administrativa e ainda sobrasse algum recurso para pequenos projetos, como mostram os exemplos de aplicação de recursos da cobrança.

Limites de uso dos recursos da cobrança para custeio do comitê e de sua agência

A lei da Política Nacional de Recursos Hídricos estabeleceu como limite 7,5% da arrecadação “no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (Art. 22, inc. II e § 1º.). As unidades federadas em grande parte acompanharam a União neste percentual. Uma das exceções foi o Rio Grande do Sul que estabeleceu um limite de 8% para “custeio dos respectivos Comitê e Agência”, e ainda 2% para “custeio das atividades de monitoramento e fiscalização do órgão ambiental do Estado desenvolvidas na respectiva bacia”. Estes valores mostram o quão otimistas foram os legisladores, ao imaginar que 2% seria algo substancial para apoiar atividades caras de monitoramento e fiscalização (trata-se aqui de uma autocrítica já que fui um dos membros do grupo de trabalho que elaborou o projeto de lei que foi aprovado na íntegra). O mesmo se pode dizer dos 7,5% (ou 8%): havia uma expectativa que os recursos fossem vultuosos e que poderiam ser usados “no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos” (Lei federal 9.433/97) e o legislador pretendeu restringir o direcionamento dos recursos para custeio.
Hoje, quando se verifica o quão pequenos são estes recursos, e menos ainda representam seus 7,5%, o que impede alguns comitês com pequenas capacidades de arrecadação de manterem uma secretaria administrativa. Entendo que mesmo nos casos em que todo recurso da cobrança fosse usado para custeio do comitê, ainda assim seu papel de negociação e de “arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos” (art. 38, inc. II da Lei federal 9.433/97 que trata das competências do comitê) seria válido. Por isto acredito que este limite pode ser ampliado, pela decisão do próprio comitê. O que obviamente determinará uma alteração da legislação.

Conclusão final

Apesar de decepcionante diante das expectativas que havia, a cobrança ainda pode ser um instrumento relevante para estabelecer autonomia financeira para os comitês e, em certos casos, para que possam aplicar seus resultados em estudos e pequenos projetos que acabam por justificar e reforçar suas existências. A prática do Rio de Janeiro - e a teoria do Rio Grande do Sul - em propor que seja iniciada a cobrança de imediato em todo estado, com um valor mínimo que poderá ser incrementado pelo Plano de Bacia Hidrográfica se demonstrou bem sucedida no estado fluminense. Deve por isto servir de exemplo às demais unidades federadas e talvez à própria União, em águas federais. Deixar também à deliberação dos comitês o percentual da arrecadação da cobrança a ser aplicado em seu custeio parece ser uma solução para viabilizar o comitê no exercício de suas competências, especialmente quando a arrecadação for pequena, o que ocorre na maioria dos casos. Já que pouco se pode fazer em matéria de investimentos, que seja feito em matéria de custeio da atuação do comitê.